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NEGRA VOZ

“Canta cigarra noturna quero ouvir teu cantar”
José Leopoldo – Buick

O compositor Paulo Vanzolini foi se aproximando bem devagar e logo escutou a voz forte que vinha do fundo do botequim e lá estava o dono da bela voz, Mauricy Moura.
Paulo Vanzolini esperou, esperou e o homem não apareceu. Esperou em vão. Mauricy não apareceu mesmo. Afinal era o primeiro negro a ter um programa de TV só seu e ao vivo, isso lá pelos idos dos anos cinquenta. Era o único personagem. E o homem não apareceu. Preocupado, Vanzolini desceu a serra e foi até São Vicente. Dona Georgina, mãe de Mauricy, disse que o filho estava metido em um botequim. Vanzolini encontrou o nosso astro nos fundos do boteco comendo lasquinhas de bacalhau cru, tomando uma cachacinha e cantando para o português, dono do boteco, pelo menos há uns dois dias. Era essa a vida do rebelde Mauricy Moura que morreu jovem aos cinquenta e um anos de idade.          
Mauricy, ainda muito menino, incentivado pela mãe Dona Georgina, iniciou sua carreira junto com o irmão Mauricio, talentoso violonista e com ele criou o Regional Calunga.
No ano de 1948, Mauricy ingressa na Rádio Atlântica de Santos e, em 1950, levado pelo cantor Silvio Caldas, é contratado pela Rádio Excelsior, nesse mesmo ano se transfere para a Rádio Record.
Em maio de 1952 grava seu primeiro disco (78rpm), com a música “Não digas nada”. E, exatamente há 60 anos, no ano de 1953, grava a canção “Incerteza” composição de dois novatos compositores, Tom Jobim e Newton Mendonça. É isso mesmo, a primeira gravação de uma música do Maestro Antonio Carlos Jobim, coube ao arredio Mauricy Moura.
O que importa aqui, na verdade, é destacar a postura de Mauricy Moura frente ao mundo nem sempre muito honesto e nada transparente de empresários e comerciantes da noite e a sua independência em relação ao cenário musical da época, não se submetendo, em hipótese alguma, a modismos viciados de qualidade duvidosa.
Não senhores, a negra voz não fazia concessões, cantava o que bem queria cantar. A independência de Mauricy era, muitas vezes, confundida com arrogância. Definitivamente era um negro que não conhecia o seu lugar, era o dono de seus atos, negro de alma negra.
Os empresários da noite sofriam na mão do cantor, pois, entre os contratos e cantar para um amigo num boteco qualquer, ficava quase sempre com a segunda opção.
Não se apegava a bens materiais, só o essencial, no caso um ouvinte e um violão. De dinheiro não dependia, ao contrário, desprezava. Nas palavras do biógrafo Mário Santos: “Ele e seu próprio valor eram medidos pela presença sempre útil, valiosa e concentradora em qualquer ambiente que freqüentasse.”
Outra curiosidade a respeito de Mauricy é que ele não andava com documentos. Ele era a sua própria identificação. Mauricy Moura se bastava. Seu violão, sua negra voz e a única amiga, a boemia. 
Citando mais uma vez Mário Santos: “Quando cantava, onde estivesse, o silêncio se fazia presente. Era o respeito a uma voz marcante, canto inigualável.”
Seu compromisso, afinal, era com a música, com a noite, parceira e amiga. Essa visão nada profissional custou muito caro ao Mauricy Moura que morreu em 1977 e, graças a alguns poucos amigos, não foi enterrado como indigente. Não tinha mais ninguém por perto. Alma negra, negra voz.

Renê Rivaldo Ruas
Escritor, diretor do Clube do Choro de Santos e desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional “Ouro Verde”  


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