O pesquisador está lançando o volume “Conjunto Atlântico – Uma História de Amor ao Choro”
Antonio D’Auria (1912-1999) era uma espécie de Tinhorão do choro. Defendia-o com unhas, dentes e as sete cordas do violão! Fazia restrições à bossa nova, que dizia ter modulações próprias da MPB. Segundo ele, os chorões eram poucos, conheciam-se por apelidos e formavam com orgulho uma espécie de confraria.
José Ramos Tinhorão é um jornalista e crítico musical defensor da música brasileira genuinamente popular, sem modismo ou estrangeirismos. Por isso, também fez severas restrições à bossa nova e ao tropicalismo (este por aderir à guitarra elétrica, do rock americano).
Entre os anos 1950 e 80, D’Auria capitaneou um dos principais grupos de choro de São Paulo e do País, o Conjunto Atlântico. Formado a partir de reuniões em sua casa, no bairro de Casa Verde, o grupo ajudou a popularizar o gênero ao se apresentar regularmente na TV Cultura, em programas como “O Choro das Sextas-feiras” e “Alegria do Choro”, que repercutiu nacionalmente.
Entre 1977 e 1978, também tocou nas duas edições do Festival Nacional do Choro, promovidas pela TV Bandeirantes.
É tanta história que só caberia num livro. E foi o que o professor e pesquisador José de Almeida Amaral Júnior fez. Apaixonado por choro, o autor desbravou pilhas de recortes de jornal e revista, discos, fotografias e partituras para escrever as 285 páginas do livro “Conjunto Atlântico – Uma História de Amor ao Choro” (Selo Independente Paulistinha), com prefácio do presidente do Conselho de Economia do Estado, o professor Antonio Correia Lacerda.
Trata-se de uma publicação feita “na raça, sem apoio financeiro de qualquer instituição, de qualquer fonte a não ser meu próprio bolso de professor”, como declara Mestre Zé Amaral – como é conhecido no Clube do Choro de Santos, no qual é Conselheiro Honorário.
O pesquisador esteve na Cidade, no dia 19 de outubro, para lançar a obra. Foi uma noite regada a música e boas lembranças, com a presença ilustre de Izaías do Bandolim, que fez parte do Conjunto Atlântico. O cenário foi a sede do Clube do Choro de Santos, na Rua XV de Novembro, Centro Histórico.
Zé Amaral também é autor de outro livro referencial: “Chorando na Garoa: Memórias Musicais de São Paulo” (Selo Paulistinha, 2013). Trata-se da primeira grande obra bibliográfica sobre a história do choro paulista, e o autor está contente pelo rumo que tomou.
O livro ganhou uma edição especial pela Fundação Theatro Municipal de São Paulo; virou nome de choro e do CD de Izaías e seus Chorões este ano; foi chamado de “a atual Bíblia do Choro por Ruy Godinho, em Brasília, de “tratado” pelo soteropolitano Perfilino Neto e de “referência” na fluminense “Revista do Choro”.
“E ainda acabou de se transformar no primeiro audiolivro de choro do País, numa parceria feita com a Biblioteca Louis Braille, do Centro Cultural São Paulo, para os deficientes visuais”, comemora Amaral.
Foi durante a pesquisa para “Chorando na Garoa” que o autor decidiu revelar a história do Conjunto Atlântico, o perfil de Antonio D’Auria e o que o músico conseguiu com a sua moçada de instrumentistas.
Amor incondicional
Amaral lembra que, na história do choro paulistano existiram outros grandes grupos no período de ouro do rádio, como o Regional de Armandinho Neves, de Pinheirinho, de Gaó, de Mauro Silva e de Antonio Rago, entre outros.
Por que, então, um livro sobre o Conjunto Atlântico? “Eu considero absolutamente injusto esse grupo não ter nenhum trabalho contando a sua trajetória. Eles eram um grupo de profissionais em suas áreas pessoais de atuação que não a música, que era aquilo que os completava como gente”, justifica.
O autor então ilustra a paixão dos músicos ao lembrar a trajetória de Agostinho Garcia (bandolim), do Atlântico: “O sujeito trabalhava numa indústria no ABC e ia duas ou três vezes na semana, à noite, estudar música com alguém do outro lado de São Paulo. Isto em fins dos anos 1950. É fantástico o amor pela coisa”.
Para o autor, foi essa dedicação incondicional ao choro que despertou a admiração de Jacob do Bandolim por Antonio D’Auria e seu conjunto: “Jacob sabia que D’Auria tinha o sonho dourado de atingir a perfeição. E D’Auria deu dicas a ele para a formação e sonoridade de seu grupo”.
Dividido em 13 capítulos e ilustrado por fotos de época, “Conjunto Atlântico – Uma História de Amor ao Choro” começa com um capítulo generoso sobre a São Paulo dos anos 50. “Nós somos resultado de um contexto. A arte brota desse meio”, diz o autor.
E entre as muitas e deliciosas histórias, há uma de autoria de Luiz Antônio Pires, do Clube do Choro da Cidade, que lembra que a Cidade foi o berço do conjunto: “O nome Atlântico não só remete à famosa composição homônima de Ernesto Nazareth, como foi uma homenagem ao antigo Atlântico Hotel, em Santos, onde, curiosamente, foi idealizado o grupo”.
Serviço: o livro custa R$ 40,00 e pode ser encomendado pelo e-mail chorandonagaroa@gmail.com. Também é vendido pela Loja Free Note.
Leia entrevista completa com Zé Amaral:
Sua pesquisa é bastante pautada na oralidade, nos depoimentos. Você sente que o choro paulista um tipo de história que necessita desse registro documental, escrito?
Obviamente eu dou importância para fontes como jornais e revistas. Mas, gosto muito de lidar com documentos pessoais e, especialmente, a oralidade. Ela dá um colorido, uma riqueza especial à pesquisa. E é um documento porque são as impressões pessoais colhidas e não passadas pelos filtros de terceiros como editores e outros poderes que oficializam o que deve ou não ser contado. A própria pessoa decide o que dizer para você. Ela tem a sua verdade. Tem a sua emoção. E o entrevistador/ pesquisador acaba por partilhar um pouco das experiências vividas pelo entrevistado.
Que percepções você mais detectou entre os entrevistados e depoentes sobre o período em que o grupo atuou? Há muita nostalgia?
Sim. Eu pude constatar que as pessoas tem saudades. Porque muito do que viveram já não mais existe. Porque é duro lidar com perdas. É preciso ter um aprendizado que nem sempre se completa, creio eu. Caso da perda dos amigos queridos e mesmo de locais que foram importantes e hoje ou não existem mais ou não tem mais função. São pouquíssimos os sobreviventes das aventuras do Atlântico. Por isso, é um livro de história, porém, também de saudades para familiares, amigos e quem viveu aquilo.
Você também não se furta de falar do samba antes de chegar ao choro. Qual foi o objetivo de mostrar a existência de outros gêneros musicais na Capital? É uma maneira de valorizar São Paulo, também, como berço do samba?
Falo um pouquinho do samba neste livro. No “Chorando na Garoa” avanço mais nesse tema. Mas, é importante registrar que nas raízes daquilo que viriam a ser as escolas de samba, mais especificamente os cordões carnavalescos paulistanos, junto ao característico ‘bumbão de Pirapora’, havia os grupos de choros que iam junto nos desfiles. Isto se perdeu por completo. E as pessoas não sabem. Mais um aspecto que você lembrou bem, Carlota, que mostra a demolição da memória. É preciso atenção.
Também achei bem curiosa a origem rural do choro no Vale do Paraíba. Teve algo, nessa pesquisa, que o surpreendeu? Que você descobriu durante o levantamento de dados para este livro?
Eu trato com mais tempo esse assunto no “Chorando na Garoa”. Mas, o fato é que as pessoas desconhecem as origens do samba em São Paulo. Aliás, de modo geral, tenho a impressão que os estereótipos são poderosos: manchetou a EBC “Primeiro Samba faz 100 anos” em novembro de 2016, sobre a gravação de “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida. É a ‘história oficial’ sendo multiplicada. O País tem samba por vários cantos do território e muitos historiadores questionam inclusive essa como “a primeira gravação de samba”. Aliás, é um maxixe. Polêmica, até, entre os próprios compositores que brigaram na justiça etc. Mas, o fato é que o samba tem características regionais e tal. Com a força do rádio, da industria fonográfica e, depois, da TV, no caso de uma de suas expressões, as Escolas de Samba, acabaram ficando modeladas pelo esquema “desfile na Sapucaí”. Influências externas também geram certa moldagem também ao choro. São Paulo tinha sanfoneiros e violinistas importantes nos anos 1920 e 30 que davam um toque aos grupos locais, com um espírito mais caipira, mais brejeiro e romântico.
O Conjunto Atlântico foi um dos grupos mais longevos de choro, certo? A que se deveu, na sua opinião, essa longevidade?
O Conjunto Atlântico, propriamente dito, foi definido entre 1950 e setembro de 52, quando em uma apresentação num festival de violões, em uma paróquia na paulistana Vila Guilherme. O nome do grupo definido para a ocasião e o D’Auria recebeu um simbólico cachê. Até ali, o suposto conjunto era o encontro dos amigos em várias rodas que aconteciam na casa do Juracy Wey, o Barão, do prof. Bernardini, do sr. Rossi, entre outras. Dali para adiante, nota-se que D’Auria vai dirigir cada vez mais um núcleo que efetivamente podemos considerar o Conjunto Atlântico, cujo espaço de estudos e ensaios é a lendária Av. Rudge, 944, no Bom Retiro. Inicialmente na sala e, depois, num ‘estúdio’ ao fundo da garagem lateral.
Que qualidades Antonio Auria reunia para ser o catalisador do choro em São Paulo?
Pelo que constatei, D’Auria era muito organizado, dedicado e caprichoso no que fazia. Um sujeito criativo, que lidou com mecânica, com ótica e com música. Sempre com sucesso. E, envolvendo isso tudo, tinha uma grande preocupação em manter o choro vivo, por isso pesquisava, registrava e ensinava. Isso foi essencial para eu resolver escrever este livro. Esse idealismo de D’Auria, que foi partilhado pelo grupo! Em tempos de tanta competitividade, individualismo, egoísmo, como vivemos hoje, essa coisa do D’Auria de querer ensinar e confiar em empréstimos de discos e partituras, abrindo as portas da casa dele em noites de sextas feiras para qualquer interessado, é algo muito especial. Foi um cara diferenciado. E não tinha ensino superior etc.
Quais foram suas principais fontes de pesquisa sobre o choro paulista? Sente que falta material sobre essa história?
O Instituto Moreira Salles é uma das instituições que reúnem um bom material, certo? Carlota, você foi testemunha lá no Teatro Guarani, em junho de 2013, do lançamento do primeiro livro geral sobre o choro na Pauliceia. O que tínhamos na mão do público, até então, eram algumas biografias e manuais de instrumentos. E dissertações de mestrado e afins. Nada em grande proporção, pelo que até hoje sei. “Chorando na Garoa” rompeu esse bloqueio sendo levado às bibliotecas públicas municipais paulistanas. Isso é o que importa. Apresentar outros livros de choro, além dos tradicionais cariocas, que também não são muitos. Quantos livros de rock você conhece? Ou de Jazz? São vários! Inclusive com coleções vendidas em bancas de jornais. Há muita coisa, inclusive escrita aqui sobre esses produtos culturais estrangeiros. E sobre a primeira música instrumental urbana do País? É um bruta descompasso. Sobre o Instituto Moreira Salles, eles tem feito um trabalho bonito, organizando coleções, republicando alguns livros etc. Eles compraram o acervo do sr. D’Auria e ainda estão por realizar uma melhor exposição do material. Eles foram muito parceiros para minha pesquisa, colaborando bem com o que precisei de documentação.
No livro, o Luiz Pires dá um depoimento muito interessante em que revela como surgiu o Conjunto Atlântico e como o grupo ganhou esse nome. Você poderia falar, bem resumidamente, sobre a importância de Santos para o desenvolvimento do choro?
O Luiz Pires é um poeta do choro. Sujeito abnegado, que não se furta a pegar o esfregão para limpar o chão no Clube do Choro de Santos. E é o idealizador do Dia Estadual do Choro em São Paulo, projeto que foi encampado e apoiado pelo presidente Marcello Laranja e pessoal do Clube. O Luizinho esteve acompanhando nossas aventuras desde o início para este livro. E ele em sua contribuição para o texto fez apontamentos sobre a paixão de D’Auria pela cidade de Santos, pelo belo Hotel Atlântico onde se hospedou por vezes e pelo mar. O D’Auria também falou em ocasiões ser apreciador do choro “Atlântico” de Ernesto Nazareth. Enfim, Santos é uma cidade muito importante na história nacional e tem uma longa tradição de choro, registrada desde 1876, conforme pesquisas de Olao Rodrigues, jornalista falecido há mais de 30 anos. Os cânones falam simbolicamente no surgimento do choro em 1870. Note como os santistas já estavam na sintonia do choro desde as origens!
Existiu outro conjunto como o Atlântico em São Paulo?
Na história do choro paulistano existiram outros grandes grupos no período de ouro do rádio, caso do Regional de Armandinho Neves, de Pinheirinho, de Gaó, de Mauro Silva e de Antonio Rago, entre outros. O próprio Canhoto – Américo Jacomino, um fenômeno, teve regional. Mas, com a projeção nacional, devido aos programas com Julio Lerner na TV Cultura e às idéias de difusão do choro como tiveram D’Auria, Izaías e cia., creio que não. Eles eram além de músicos eram demais idealistas. O livro conta bem isso.
Como você vê o cenário do choro, hoje, no Estado? Vê novas gerações interessadas no gênero?
O choro em São Paulo viveu neste período dos últimos sete a dez anos um crescimento muito interessante, com o aparecimento de muitos músicos de alto nível no Estado, vindos de escolas e já arriscando inclusive carreira especificamente no campo da música. Foi o período que surgiu o próprio livro “Chorando na Garoa” e articulou-se a terceira edição do Clube do Choro paulistano, que chegou a existir por um ano e meio tendo como sede o Teatro Municipal Artur Azevedo, na Moóca, com ótimos shows, rodas semanais, vários workshops e onde pude fazer a primeira palestra, sobre a história do choro local. Todavia, infelizmente, a nova gestão em 2017 desalojou o Clube de sua sede. O pessoal protestou muito, mas não houve até agora um resgate. Isso significa novamente falta de um espaço comum a todos, já que o povo se encontra muitas vezes em bares e teatros, ambientes pagos, o que é uma pena. É preciso se repensar isso porque, de fato, há muitos talentos pipocando, por sorte. Mas, um Clube, aglutinador e propagador é essencial.
Tem projeto para um novo livro? Ainda há muito o que se contar sobre o choro paulista?
Neste momento estou curtindo a publicação de “Conjunto Atlântico – Uma História de Amor ao Choro”, aberto a conversas sobre o gênero e me dedicando à produção e apresentação em Web Rádio do semanal “Programa Choro e Cia” , que tem sido muito bom. Já me falaram que eu deveria voltar à pesquisa acadêmica com esses livros e tal. Como disse acima, há muito a se fazer pela historiografia do choro. Vamos conversando com o tempo para ver o que ele nos sugere…