RSS

MARIANA DE JESUS OU DA SILVEIRA?

MarianaA minha família, assim como a grande parte das famílias brasileiras, foi formada por três raças. Portuguesa, Espanhola e Africana.
A partir de meu pai, chegaram os espanhóis. Por cem anos esse passado ficou às escuras. Não se sabia de nada. Pouco ou quase nada se sabia dos avós paternos, apenas que eram espanhóis da cidade de Suelo, região de Ourense. Procura aqui, procura acolá, manda e recebe correspondência, pede para uns e outros e se descobre uma aldeia lá nos cafundós da Espanha onde o pai nasceu. E, depois de tantos anos passados, encontramos os documentos dos espanhóis do meu pai e, então se descobre também que o nome do pai era totalmente diferente da tal carteira modelo 19. Descobrimos quase um século depois que, o nome do pai não era José Ruas, e sim José Rua Rivera. O pai morreu sem saber da sua verdadeira história. Conseguimos decifrar a origem espanhola de nossa família.
A partir de minha mãe chegaram os portugueses e os africanos. Os portugueses da família chegaram com o avô Francisco Antonio Cavaco. O avô Francisco nasceu na cidade de Cedovim, aldeia que pertence ao “concelho” de Vila Nova de Foz Côa, em 1860. Descobrimos, pois, os portugueses de nossa família, depois de longos anos também.     
Depois de tantos anos de pesquisas conseguimos decifrar a origem portuguesa e espanhola da família, desde avós e bisavôs, porém, ainda faltava a origem africana e ai é que a história não termina, nunca.
Da parte de minha mãe, além dos portugueses, chegaram também os africanos quando, vem pra Santos a avó Mariana de Jesus, nascida em Iguape, SP, em 1874. Aqui começam as divergências. A avó Mariana afirmava com veemência que era de 1874, porém, alguns documentos afirmam nem tão confiáveis assim, apontavam com 1877. Aqui, fico, portanto, com a data de 1874. Alguns documentos afirmam que ela se chamava Mariana da Silveira e outros, Mariana de Jesus. Em 1941, quando ela casa com o avô Francisco Antônio Cavaco, passa a se chamar Mariana da Silveira Cavaco ou ainda, Mariana de Jesus Cavaco.
Nestes tempos, é dessa Mariana de Jesus ou da Silveira que presto aqui minhas homenagens. Ainda conheci essa Dona Mariana, que se dizia das terras de angolanos, muito menino e de convivência de pelo menos dois a três anos de consciência e de memória.
Viúva, desde 1950, morava com o filho, Tio Diamantino Cavaco, exímio pandeirista, e um dos fundadores do Rancho dos Boêmios, numa casa de cômodos muito humilde à umas duas quadras de onde eu morava com o pai, a mãe e os irmãos. Teve mais duas filhas, Tia Zulmira e Tia Leonor. Eu estava sempre enrolado na saia da vó. Em 1956, parte do morro do Marapé desaba. Uma grande comoção tomou conta da cidade e naquela madrugada todos foram pra casa da vó, pois, o nosso chalé ficava no pé do morro. Passado o tempo ruim, a minha vida ficou muito feliz, finalmente a vó e o tio foram morar no chalé, número 10 da Rua Alberto Veiga e que ficou encantado a partir de então.
Devo confessar que, ainda na tal casa de cômodos, aos sete anos de idade, comecei a fumar um cigarrinho de maço amarelinho de nome Beverly, junto com a vó Mariana. Comprava o cigarro no Bar do Trinta e ganhava um de presente. Ô vó porreta essa! Tão agarrado que era que a mãe me chamava de vó Mariana.
A avó nasceu em Iguapé, sul do Estado de São Paulo no final do século XIX. Iguape tinha como atividade principal a produção e exportação de arroz e uma população composta de maioria escrava que trabalhavam no plantio e na colheita do arroz. Poucos senhores mantinham um grande número de escravos que atendiam a necessidade de mão de obra na produção e exportação de todo o arroz produzido.
Nasceu a vó nessa cidade muito pequena, em 1874, supostamente “livre”, pois a Lei do Ventre Livre foi assinada em 28 de setembro de 1871. A tal lei considerava livre todos os filhos de escravas nascidas a partir da Lei. O quase nada da vida da vó Mariana foi se sabendo e aprendendo através das histórias contadas por ela mesmo que era o que eu mais gostava de fazer. Ouvir suas histórias da escravidão vivida.
Sabia ler e escrever e sobre isso contava das dificuldades para o aprendizado, na maioria das vezes, às escondidas, pois era duramente proibido saber ler e escrever. Fazia parte das minhas manhãs, quando o pai que trabalhava no jornal O Diário, trazia o jornal ainda quentinho, ouvir a vó ler as notícias na hora do café. Prazer melhor não havia, nem mesmo o maior de todos que era jogar bola na rua de terra batida. No entardecer também era bom, escondido de todos, além de ouvir histórias, pitar um cigarrinho. Ela deixava sempre umas bitucas guardadas nos bolsos pra fumar mais tarde. Era muito bom dançar pra ela quando o tio Diamantino tocava o pandeiro. Dava umas gargalhadas contidas.
O menino adorava as histórias da vó Mariana e, que era de uma magreza a olhos vistos, logo ganhou da vó o estranho e carinhoso apelido de “pau de vira tripa”. Apelido esse, “pau de vira tripa”, que só foi descobrir, a razão, bem mais tarde.
As histórias contadas nem sempre era lá muito agradáveis não. Contava que, mesmo com a “Lei do Ventre Livre”, a escravidão era a mesma, o trabalho cruel era o mesmo ou pior. Criança ainda fazia todos os serviços pesados, lavar roupa, secar, passar, cortar lenha, engomar e cozinhar, claro.
Falava dos pais e da irmã com profunda tristeza. A irmã veio também para Santos e trouxe o filho Waldemar que ficou sozinho no mundo e morreu em casa, consumido que foi pela tuberculose. Tempos duros. Contava ainda de um quarto sombrio na senzala onde os negros ditos revoltosos e indolentes eram torturados. Por castigo diziam ou para exemplo. O menino não entendia tanta crueldade. Dizia que, certa vez, conseguiu entrar no proibido quarto e ficou sem dormir. Ficou aterrorizada com as correntes e os aparelhos de suplício. Paredes sujas de sangue. Parecia até que dava para ouvir os gritos que explodiam das paredes. Essa parte da história eu não gostava não. Ficava triste por dias.
Passando a tristeza ou banzo, logo voltava a alegria que era a parte mais feliz da convivência com a vó. Era quando falava dos batuques e batucadas. Festas de São Gonçalo, Folia de Reis, Moçambique, Festa do Divino, Congadas e São Benedito e isso era bom.

“Oi minha andorinha branca, veim avoando da donde que vem. Oi vamo levá rainha. Ou lá no palácio do rei.”

“Fazê festa de pretinho, fazê festa de pretinho, pra branco que num diga, que festa de negro é.”

Certo dia contou, entre gargalhadas misturadas com lágrimas que, na manhã de uns dias depois do dia 13 de maio de 1888, algumas jovens de sua idade passaram em suja casa aos gritos, dançando e cantando em delírio. “Mariana, Mariana, estamos livres, estamos livres, livres, livres!” – Doce ilusão.

A vó Mariana sabia fazer o menino feliz. E cantava e dançava e fumava o cigarrinho de maço amarelinho. Eita vó porreta! E contava cada dia uma novidade. Lá pelos lados de Iguape, sem luz em tempos de escuridão mesmo, surgia no maio das plantações de arroz e das matas o Caipora, o Currupião, a Mula sem cabeça e o meu preferido, o Saci Pererê. Era o meu preferido porque era useiro e vezeiro nas artes das molecagens e traquinagens. Conforme avó Mariana ensinou, a criatura nasce no broto do bambu onde fica por sete anos, depois, livre, vive por setenta e sete anos infernizando a vida das donas de casa e queima feijão, troca o sal pelo açúcar, torce e retorce as roupas que ficam nos varais, nos quintais. Torce e retorce a crina e o rabo dos cavalos dando nós quase impossíveis de serem desatados, além de aporrinhar a vida dos cães e gatos. Dizia ainda a vó que, naqueles tempos, era costume ter um Saci-Pererê guardado numa garrafa, pois, feiticeiros e profundos conhecedores dos segredos das ervas e das florestas ensinavam e ajudavam a curar doenças.
Nesses poucos anos de convivência com a vó muito querida, posso afirmar que, a régua e o compasso para seguir em frente, me foi dado por ela, foi ensinado por ela. Até o cigarro pra fumar que deixei há muito tempo.
Por tudo isso e muito mais era preciso contar a história da não história da minha avó Mariana de Jesus ou da Silveira. Mais do que uma homenagem, mais do que lembrar a vó querida, é uma forma de saldar essa dívida de gratidão, o resgate da parte da história da minha família, ainda por contar. Nossa família conseguiu encerrar as histórias dos meus avós paternos e do avô materno, porém ficou em aberto a história de minha avó africana de angolanos, como ela chamava seus ancestrais.
No final dos anos cinquenta, mais precisamente em 1958, a vó Mariana, que mantinha um Sací-Pererê na garrafa, pariu sem mais aquela e a garrafa quebrou e com ela desapareceu também o nosso Saci. A mãe falou que Deus chamou a vó Mariana. Fiquei um bom tempo chateado com Deus, troquei até de mal com Ele, mas como não andava tão bem na escola, logo fiz as pazes, precisava passar de ano. Por isso e muito mais caro amigo leitor, guarde sua garrafa com carinho e não deixe ela se quebrar, nunca. Se possível.

“A minha vida é feliz. Eu sou como um galho que foi abrindo caminho foi ao quintal do vizinho com a permissão da raiz. A África me deu o berço, Oralian agradeço. No Egito, Judéia, Roma em todo canto só é livre que guarda no coração sua herança, quem tem total confiança e busca sua segurança na força de suas raízes”.
(Altay Veloso em Alabê de Jerusalém)

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.


Your Comment