“As ações dos seres humanos são os melhores intérpretes de seus pensamentos.”
(John Locke)
Trabalhando no jornal A Tribuna, no final dos anos 60, vivia, pois, todos os dias, pra cima e pra baixo, entre bancos, agências de publicidade e empresas fazendo o chamado serviço de rua ou, ainda, como se dizia na época, pagamento da praça.
Sexta-feira dava uma esticada pelos lados da Vila Mathias para recolher troco com o Seu Paulo, do Almeida, para atender o balcão de anúncios do jornal.
Nessas idas e vindas pela charmosa e elegante cidade, hoje chamada de centro histórico, descubro, entre tantos lugares, Igrejas, Restaurante da Bolsa de Café, a vitrine da loja Ferreira de Souza, bem ali, na Rua Augusto Severo, atrás da Prefeitura e ponto final do bonde 37, das ruas e praças, uma pequena loja de discos, bem ali na Rua Amador Bueno, quase esquina com a Rua Frei Caneca e logo faço amigos, alguns já conhecidos dos bailinhos de fim de semana do bairro do Marapé, a loja dos músicos e da música, o Pepe Músicas.
Nesses tempos, ainda muito jovem, vivia na casa do compadre e amigo Cabeleira, onde a molecada passava boa parte do tempo ouvindo a coleção de discos do Seu Joaquim, estivador e comunista, pai do compadre Cabeleira.
Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves, Cyro Monteiro, Roberto Silva, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda e outros tantos e era o que a molecada ouvia.
Com a descoberta do Pepe Músicas, logo fiz e refiz novas amizades e, já da casa, pegava dois, três “discões”, o tal vinil, e passava um bom tempo na cabine descobrindo novos sons e novidades e, ainda, para aproveitar mais o tempo, deixei de almoçar em casa. Ficava pela cidade andando pra cá e pra lá, às vezes, comendo o feijão com arroz lá no Palladim, na Praça Mauá, do lado do Carioca ou comendo um monte de pastel no carrinho do “Shiro” na Rua XV com a Rua Frei Gaspar, principalmente o de carne com pimenta, o campeão de bilheteria. E, naquele espaço das duas horas do almoço, “garrava” na conversa e deitava falação com o velho Pepe.
Seu Pepe, bom homem, bom de conversa e profundamente apaixonado por música, era bom de ouvir e logo ficamos velhos amigos, eu, um jovem adolescente, e aquele jovem senhor de poucos cabelos, porém brancos.
Seu Pepe ficava de olho comprido no menino que, curioso e encantado, passava um tempão na loja e nem comprava nada. Dinheiro não havia. A loja respirava música. Seu Pepe tocava pistom. Os filhos, Betinho, o internacional, tocava vibrafone e o Serginho que, iniciava seus estudos de pistom, no andar de cima da loja.
Sexta-feira, depois do serviço de banco, final da tarde, dava uma passadinha no Seu Pepe, pois, sempre rolava um som, aliás, um som que, na maioria das vezes eu não entendia. Uma música um tanto estranha, tocada pelo Betinho, Anselmo, Pezão, Gafanhoto, Marcelo e outros tantos músicos, pois que, era só chegar e sair tocando.
Por essas e outras, em conversa com Seu Pepe, sobre aquela estranha música, um tanto quanto complicada e, acostumado que eu estava com valsas, sambas e choros, foi que ele trouxe três discos para ouvir. Corri para a cabine com Wes Montgomery, Clark Terry e Ray Brow debaixo do braço.
Os primeiros contatos foram de surpresa, estranhamento e certa confusão. O Seu Pepe, sábio, não complicou a vida do curioso jovem. Aos poucos aquela estranha música, o Jazz, foi se aproximando, foi sendo entendida e, logo, o homem apresentou Oscar Peterson, Charlie Parker e Miles Davis, para complicar de vez.
Com muita sede de ouvir e aprender, certa vez o menino perguntou ao paciente senhor Pepe sobre cantores e cantoras de Jazz. Seu Pepe foi buscar em outro local da loja um disco, Billie Holiday.
Paixão na primeira audição. Caído de quatro para sempre. É quase impossível ouvir Billie sem se emocionar ou sem se apaixonar. E, graças a Seu Pepe, Billie, depois de tantos anos, tem seu lugar garantido na discoteca de Lps em casa. Billie é a própria música.
Foi também lá no Pepe Músicas que conheci o lendário De Vaney, duble teimoso e imitador de Orlando Silva, além de camelô por profissão.
De Vaney, o malandro que tinha sons dentro do peito, respirava canções. Todos sabiam. O vivaldino, quando não estava preso, desaparecia por uns tempos e nessas sumidas se perdia no Pepe Músicas onde pegava todos os discos possíveis do Cantor das Multidões e passava horas e horas junto a vitrola carregando o peito de canções. Seu Pepe, grande alma, não se importava, pois tinha também canções no coração, dentro do peito.
Algumas vezes, o velho Pepe, já no final da tarde, com imenso prazer e feliz da vida tocava o seu mini pistom de procedência alemã, dizia ele que era “afinado” em “Dó” e fazia questão de contar a todos a história daquele mini pistom.
A cada dia, o Seu Pepe mostrava uma novidade para o curioso jovem. Agora, além, dos músicos de Jazz, de Samba, de Samba-Canção, surgia discos de Choro e muita música cubana. Rumba, Mambo, Salsa e boleros mil, afinal era baile todo final de semana. It Clube, Vasquinho, Uirapuru, Libertário e de preferência com Pepe e sua Banda, Betinho do Vibrafone, depois, Betinho Internacional, Caribe Steel Band e o Zago.
Nesses tempos também, com certa dificuldade, conseguia dar uma espiada no Samba-Danças, onde desfilavam os grandes bailarinos e malandros, Nego Orlando, Pescadinha, Nelsinho Boneca, Pedro Grilo, Sabará e tantos outros milongueiros do liso e do cruzado.
Por gentileza do Seu Pepe, depois de velhos e grandes amigos, conseguia entrar em alguns bailes de graça, pois, mais que certo dinheiro era uma raridade, dinheiro nem pensar.
Minha Avó já dizia que dia de tudo é véspera de nada e assim foi. Diante de toda a alegria da loja, com músicos entrando e saindo, amigos, clientes e chatos de toda variedade e possibilidades, eis que chega um dia, dos piores, a indesejada. A eterna noite de escuridão lhe atravessa a alma.
Num acidente de barco, o filho querido do Seu Pepe, o Internacional Betinho morre afogado lá pelos lados da Ilha Porchat.
O mundo desabou no Pepe Músicas, afirmo sem medo de errar. A tristeza fez morada na loja que, um dia, por muitos anos a fio, respirava e respirava música e música. Amargurado, Seu Pepe, num processo de profunda mágoa, acaba com a sua Banda e, Serginho, o filho caçula, assume a Banda Internacional Betinho. O sorriso do Seu Pepe desapareceu e numa dor profunda aposentou de vez o tal pistom alemão. Naqueles tempos, meados do ano 60, início dos anos 70, já se avizinhava o início da decadência dos bailes de formatura com grandes orquestras, trocados pelos quartetos ou teclados.
Como ave de mau agouro se aproximava também outros tempos, duros e infelizes, que se abateram sobre a cidade levando na crista da onda pelos canais para mar aberto e revolto muitas histórias e muito da memória da cidade e de seu inesquecível passado.
Na violenta enxurrada que se abateu sobre a cidade, além de levar, de roldão, os históricos bondes e seus fraternos e educados passageiros, a elegância malandra dos bailarinos do Samba Danças, o luxo e o charme internacional do Parque Balneário Hotel, o requinte do Restaurante da Bolsa de Café, levou também o Seu Pepe, a sua Pepe Músicas, seus músicos e uma grande parte da memória boêmia da cidade.
A cidade nunca mais foi a mesmo, lamentavelmente.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.