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FILÉ COM FRITAS

garcom“Ao vencedor, as batatas.”
(Machado de Assis em Quincas Borba)

Lá pelas quatro da manhã, ou no cu da madrugada como diria o estivador e pensador Didi Canela Grossa, Orlando e Odete, depois de muito saracoteio no liso e no cruzado nos salões do Samba Danças, na base do poderoso pistom do Miro e, antes de pegar o bonde trinta e sete lá na Rua Augusto Severo, bem em frente a Casa de Ferragens Ferreira de Souza, resolveram comer ou degustar, como diz por ai, hoje em dia, o pessoal abestalhado de jantares e almoçares, lá no Café D’Oeste, na Senador Feijó com a São Francisco.
O salão do Café D’Oeste, para variar um pouco, estava deveras lotado, pois, além dos variados shows dos puteiros e inferninhos nas bocas, o pessoal da esbórnia vivia no Samba Danças, Humanitária e no Nacional. Para completar a noite e a madrugada dos vagulinos, mariolas e biltres em geral, nada melhor que encerrar a noite no Café D’Oeste, onde se comia o melhor Filé com Fritas da cidade e um cozido de se comer rezando.
Odete e o Orlando são recebidos pelo Freitas, o garçom mais antigo da casa. Atencioso e educado, o Freitas, ali no restaurante, mandava prender e mandava soltar, pois tinha mais tempo de casa do que urubu de voo.  
Naqueles tempos se podia comer em paz um suculento Filé à Cubana sem sobressaltos e sem ser pressionado pra voltar pra Cuba sem nunca ter ido lá.
Naqueles tempos tudo acontecia no centro da cidade, hoje Centro Histórico. A vida da cidade pulsava por ali, onde corria dinheiro, trabalho e alta malandragem. Poetas, jornalistas, endinheirados, vagabundos e rufiões se cruzavam nas fervilhantes noitadas das boates e cassinos.
O solerte garçom Freitas rapidamente consegue uma boa mesa para o casal. Escolhe daqui, escolhe dali e vão mesmo de Filé com fritas e arroz.
Logo é servido o prato bem caprichado. Um filé de meio quilo, três quilos de arroz e uns dezoito de batatas.
Odete e Orlando pulam para dentro do prato devagar e sempre, sem pressa, que a madrugada estava só terminando.
Depois de algum tempo, pedem o cafezinho, pedem a conta, mandam o Freitas embrulhar o arroz e o que sobrou do filé para levar para casa.
O Freitas pergunta se não vão levar as batatas. O casal não quer as batatas, só o arroz e o filé. O Freitas pondera. Porque não levar as batatas? Odete prefere apenas o filé e o arroz. A batata fica.
O nosso tão solícito e educado garçom já perdendo a paciência vai logo dizendo; Por que não levar as batatas? Estão duras, frias? Eu peço pra dar um jeitinho.
Ante a negativa do casal, o outrora educado Freitas, levemente chamuscado, saindo do sério, deixando o sussurro pra trás, ergue um pouco a voz gutural, chama o casal de intransigente por não querer levar as tão tenras e apetitosas batatas.
Batendo o pé, Freitas recolhe os pratos e talheres e mostrando todo o seu aborrecimento, num muxoxo, mais para resmungo, numa última tentativa, diz não entender porque não levar as batatas e pergunta para a irredutível Odete mais uma vez se vai querer ou não as batatas.
Por sua vez, o casal, já de saco cheio, responde com certa má vontade que não queria de forma alguma levar a porra das batatas.
Marchando de pé duro, o nosso invocado Freitas, vai direto para a copa e nervoso e muito chateado embrulha o pedido da Odete que, já nessas alturas, tinha deixado de lado a simpatia e a fineza e, por pouco, não balançou as cadeiras.
Feito o pagamento da conta, Odete e Orlando, agora sim pegam o bonde trinta e sete e chegam em casa junto com o sol.
Odete, com vontade de comer o macio filé, logo passa um café fresquinho, e, para sua surpresa lá estava o motivo da discórdia, os quase dezoito quilos de batata. Freitas fela da puta.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.


3 Comments Add Yours ↓

  1. 1

    René

    Sensacional…..e vem cá como anda o local e a comida ainda sobra algo da poesia gastronômica de outrora ?

  2. Renê Ruas #
    2

    Ô Fabrício, o velho charme e a elegância tem mais não. Mesmo porque a noite santista era vivida pelos poetas, jornalistas, artistas, músicos e o escambau(vagabundos, malandros, rufião e boêmios em geral). Não vejo atualmente no tal centro histórico nenhuma possibilidade de charme. Vejo sim uma tentativa muito mequetrefe de uma parcela muito ínfima da nova “elite” com suas reuniões e jantares muito chinfrim. Eles “degustam” vinhos e outras babaquices e são na sua maioria “analfas”. Virou chic degustar(arrghhh!) vinhos em noitadas empertigadas. São assíduos frequentadores de Miami. Santos já perdeu o charme faz muito tempo. Nossa cidade já não tem mais história pra contar.

    Abraços
    Renê Ruas

  3. Manoel Souto...do cavaquinho (rsr!) #
    3

    Parabéns mesmo, pelo bem-humorado e histórico relato!
    Um verdadeiro passeio no tempo!
    O meu abraço a todos!

    Manoel



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