RSS

QUANTO RISO, OH, QUANTA ALEGRIA!…

qto_riso1

Por Nei Lopes

O carnaval é um fenômeno da diáspora africana em todas as Américas, e sua inserção no calendário cristão foi apenas uma imposição da Igreja católica. Ele ocorre em quase todos os países receptores da imigração forçada de africanos ocorrida entre os séculos 16 e 19. Cuba, Jamaica, Haiti, Trinidad-Tobago, etc., têm carnaval bastante semelhante ao do Brasil, com um lado anárquico, farrista, brincalhão, folião; e outro teatral, narcisístico, de espetáculo.    

Em todos esses países, as expressões de música e dança, que antes eram ligadas às celebrações católicas (então, único espaço de inserção dos negros) foram quase todas forçadas a se deslocar para o período carnavalesco. Algumas permaneceram, no âmbito da religiosidade, como as Folias de Reis, no sudeste brasileiro. Mas a maioria migrou à força para o carnaval. Como foi o caso do samba paulista, que teve seu auge nas romarias do Bom Jesus de Pirapora; e também do carioca, que se consolidou nas festas de N. Sra. da Penha, em outubro, e da Glória, em agosto.
Agora, uma outra estratégia empurra o samba. O círculo midiático comercial está deliberadamente deslocando o nosso gênero mãe para o gueto espaço-temporal do carnaval. E, com isso, abre cada vez mais espaço, durante todo o ano, para a música das grandes corporações e dos grandes negócios, representada pelos nichos “sertanejo universitário”, “forró pop”, “axé music”, etc.
Você, caro visitante do Lote, vê na televisão, fora do carnaval e do verão, alguma propaganda veiculando o samba a algum produto comercial a não ser a cerveja, a carne do churrasco e a praia? Aí, vende-se ou não a falsa ideia de que o samba é uma música puramente carnavalesca, que ri à toa, feito boba e adora andar de bumbum de fora? Concorda comigo?
Nas últimas revisões de provas, o nosso “Dicionário da História Social do Samba” (Ed. Civilização Brasileira – em parceria com o professor Luiz Antonio Simas) joga um pouquinho de água fria nos “risos de falsa alegria” que tomam conta dos menos avisados do “patropi” no “carná”. Entre os assuntos estão os seguintes, às vezes não necessariamente verbetizados, mas sempre intensamente discutidos:
Histrionismo. Observemos o clichê do sambista sempre sorridente diante das câmeras fotográficas ou de televisão; e estabeleçamos o contraste entre, por exemplo, os artistas do segmento pop rock, quase sempre sisudos, supostamente aborrecidos ou reflexivos. O contraste talvez reforce a ideia preconcebida e inadmissível de que o mundo do samba seria não apenas alegre, mas irresponsável, incapaz, infantil.
Blocos Carnavalescos. Os blocos carnavalescos, no antigo Distrito Federal, foram passando, ao longo da década de 1920, da condição de grupos anárquicos de foliões para grupamentos organizados e trajados de modo uniforme. Constituíram-se, por isso, em ancestrais próximos das primeiras escolas de samba, como o Baianinhas de Osvaldo Cruz foi para a Portela e o Bloco dos Arengueiros foi para a Estação Primeira de Mangueira. Por volta da década de 1960, além dos grupos espontâneos que saíam às ruas apenas com um mínimo de organização, os blocos de samba participantes do carnaval oficial na cidade do Rio de Janeiro dividiam-se em blocos “de embalo” (também conhecidos como blocos de“empolgação”) e “de enredo”. Com a repressão da Ditadura ao carnaval de rua, os blocos foram domesticados; e os “de sujo” praticamente acabaram. Na seqüência, surgiram os blocos “de camiseta” (ilustradas por artistas gráficos famosos), boa parte deles, hoje, atuando como organizações profissionais, em busca de lucro. E fingindo que fazem samba.
Denominações impróprias. Ao contrário do que escrevem alguns jornalistas tidos como “especializados”, samba-enredo não é “hino”. A denominação cabe apenas àqueles belíssimos sambas de auto-exaltação, como “Salgueiro, torrão amado”, “Portela, passado de glórias”, “Mangueira, teu cenário é uma beleza”, “Serrinha, Congonha Tamarineira”… Da mesma forma, nem todo diretor de bateria é “mestre”. O título coube aos inovadores Mestre André e Mestre Waldomiro. E, hoje, caberia a alguns poucos, como Mestre Jorjão, cria da Mocidade. Igualmente, o título “musa” não é da tradição e não se confunde com o de “rainha da bateria”, que outrora cabia às melhores passistas de cada comunidade, escolhidas por concurso. Hoje, pela exposição midiática que proporciona, o posto tem alto valor comercial. Daí, a presença das “famosas” à frente das baterias.
Orixás. A partir de 1960, os enredos das escolas de samba começaram a tratar, também, de temas marginais à história oficial, cristalizando a revolução iniciada por “Palmares”, enredo do Salgueiro. A primeira citação explícita a um orixá ocorreu no carnaval de 1966, ano em que Império Serrano e São Clemente, fizeram enredos sobre a Bahia e citaram Iemanjá em seus sambas. Mas não se iludam os que pensam que a presença de Orixás nos desfiles das escolas seja exemplo de devoção e respeito. A riqueza da mitologia jeje-iorubana revelada ao Brasil pelo candomblé, com suas lendas mirabolantes, seus cenários magníficos, as vestes e adereços criados por uma das fontes artísticas mais importantes da História da Arte mundial não poderia deixar de ser explorada pelos cenógrafos do grande espetáculo carnavalesco. Por isso é que, todo ano, os enredos sobre Orixás transbordam nos desfiles de escolas de samba por todo o Brasil. A fonte é inesgotável; e assim sempre será, enquanto o Fundamentalismo de resultados não chega até onde pretende e vem trabalhando para chegar.
E tem muito mais (como diz a propaganda de varejo) no nosso Dicionário. Ele mostra (com licença do Hermínio) que o Samba não é só isso que se vê, é um pouco mais. Porém, enquanto o “compêndio” (como diria o Aniceto) não chega…Evoé, Momo !!! Axé, Bahia! Segura, Peão!
Nei Lopes é escritor, compositor, poeta, pesquisador e sambista.

        

 


2 Comments Add Yours ↓

  1. Renê Ruas #
    1

    Ô mais velho, belo texto hem? Ai está tudo
    aquilo que eu gostaria de escrever.
    Nei Lopes mais uma vez acerta em cheio mostrando que nem tudo que reluz é ouro.

    Abraços
    Renê Ruas

  2. Marcello Laranja #
    2

    Boa mestre Nei Lopes, faço minhas as palavras do Renê. Saravá. Uma honra para nós vermos seus artigos publicados no blog do Clube do Choro de Santos. Abraços



Your Comment