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A VIÚVA E O TROMBONE

Trombone-TrombonistaO homem era dado a oratórias e palavrórios. Diziam até que ia do latim ao francês como quem vai da sala pra cozinha. Orador oficial do pedaço de,casamentos, desquites e batizados. Falava pelos cotovelos, água de chocalho e muito mais do que a preta do leite. Valério,esse era o nome do homem que, dado a tantas atividades artísticas e culturais, era conhecido também, além-fronteiras do canal 1, como Professor.
Nas cerimônias de casamentos, em pose de ordem unida, compenetrado, o querido Valério pigarreava;
- Peço desculpas aos distintos, pois estou levemente afônico.      

Mais que uma desculpa, era, na verdade, soberba nua e crua. Solene como requer o momento, o homem ataca:
- Senhoras e Senhores, boa noite.
Dai em diante desfilava um longo discurso fidelcastriano sobre a importância do casamento e do caráter nem um pouco confiável do noivo, mais adiante, depois de alguns goles da pura, homenageava os lindos peitos e as belas coxas da noiva e, barraco armado se despedia com um “It’sconfa” se desguiando à francesa.
As melhores apresentações do Valério, sem sombra de dúvidas,aconteciam sempre durante os velórios, carro chefe do Professor.
Devo confessar aos rádios ouvintes que o estimadoValério não atuava sozinho, na maioria das vezes contava com o auxilio luxuoso do mestre Leleco do trombone, parceiro inseparável.
Leleco andava pra cima e pra baixo com o trombone de vara de som divino dependurado nos ombros. Frequentador assíduo de todas as rodas de choro, botecos, botequins e afins, além de desfilar, pois alegre folião, no Choro Carnavalesco dos Aborrecidos. A dupla, Valério e Leleco, figurinhas carimbadas, participavam ativamente de quase todos os eventos do bairro, desde batizados até os, quase uma festa, velórios.
Fato muito comentado no fundãofoi odesastroso discurso do Valério no velório do Vigário da Paróquia, Padre Estevam.
Depois da execução magnífica da Marcha Fúnebre que, após um mundo de Cambuci, podia ser até mamãe eu quero ou o tatu subiu no pau, pois, tantoufez como tantoufaz, quando o nosso Leleco, com o seu exuberante trombone de vara, levou o povo às lágrimas, o grande Valério,orador de todas as horas, improvisou:
- Senhoras e Senhores, boa noite.
- Estamos aqui, mui tristes, para reverenciar esse homem probo, impoluto, inesquecível, principalmente para as senhoras que gostavam muito, mas gostavam mesmo do carinhoso Padre Estevam que,depois de tantos anos de serviços prestados aobairro, foi se aninhar nos braços do Pai. Quarenta anos ininterruptos do mais purovigarismo.
E arrematou:
- Sem cansaço e sem férias,o Padre Estevam era foda.
E assim seguia a vida ali pelo fundão, no estribo e balaústre do bonde 37. Perto do carnaval, em pleno ensaio dos Aborrecidos, emudece o Leleco e seu trombone. Deu-lhe uma entrada de ar, pegou o bonde linha 1, viagem derradeira.
Dureza geral corre daqui, corre dali e, sem o vil metal, ficou resolvido, depois de muito disse me disse, que o enterro do Leleco seria feito a pé do Campo Grande até o Saboó.
E segue o enterro do Leleco. Do Campo Grande até o Saboó uma infinidade de botecos. Caixão no chão em cada boteco e garrafas e garrafas da branquinha. Uma paradinha, ali pelos lados do Bairro Chinês, quase na breubas do Chico de Paula, para a passagem da boiada que chegava do interior para o Matadouro.
Já no finzinho da tarde, depois de muitas garrafas bebidas, o quase carnavalesco cortejose aproxima do campo-santo e se transforma numa grande confusão. Já bem manguaçado, o Seu Zé Ramos bem que tentou “Ô Jardineira por que estás tão triste, mas o que foi que te aconteceu”, porém foi carinhosamente contido pelo braço forte do Olegário com um certeiro direto. Na rebordosa formadaera um tal de filho da puta pra cá filho da puta pra lá.
Na verdade, a turma do Valério queria porque queria enterrar o Leleco junto com o trombone e a outra turma queria que a viúva vendesse o trombone para pagar as despesas do enterro.
E nessa barafunda, lusco-fusco, eis que surge o quase filósofo Vadinho que propõe uma solução, digamos, salomónica, mais ou menos aprovada por todos.
Parte do trombone foi no caixão com o Leleco e à tristonha viúva coube a honra de ficar com a inesquecível e vigorosa vara do trombone do Leleco.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro


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  1. jorge maciel #
    1

    Parabéns Renê. O texto está ótimo e divertido.



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