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PAZ NO TERREIRO

incorporacao“De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.                                  (Bertolt Brecht)

Era confusão na certa, quebra pau para ninguém botar defeito, bastava um dar de cara com o outro ou o outro dar de cara com um e logo se dava o perereco, a quizumba e muitas vezes era preciso da intervenção da turma do deixa disso para serenar os ânimos. Pois é, essa guerra declarada, verdadeira barafunda, bordado de agulha em pano desfiado era mais manjada que as belas pernas da cobiçada mulata Janete, filha de Santo do Centro Espírita São Jorge e a Caridade, do Seu Arlindo.     O barraco vinha abaixo em qualquer lugar, na vendinha do Seu Avelino, no açougue do Seu Maneco ou ainda na quitanda do Emílio.  Seu Joaquim, estivador no cais do porto, comunista de quatro costados, ateu de carteirinha, não acreditava em Deus de jeito nenhum e dizia de boca escancarada – “Camarada, do céu só cai chuva e trovoada”. Apreciador de uma branquinha, Seu Joaquim falava com certo orgulho dos estivadores dos anos 30 que se negavam a carregar o café para a Espanha do Ditador Franco e para a Alemanha do “doido varrido”, era assim que ele chamava o Hitler. O uniforme do homem, calção de brim, sem camisa e tamanco. Na outra ponta da confusão surgia o Seu Candinho, católico fervoroso e assíduo frequentador das missas de segunda a segunda. Na Igreja participava ativamente da missa e, viciado no carteado, ministrava a hóstia como se tivesse distribuindo carta. Era tão católico, tão católico que, na Procissão, além de puxar as ladainhas, organizar a cantoria, corria pra carregar o andor e, ainda arrumava um tempinho pra soltar o foguetório. Paletó surrado, camisa de manga comprida de gola puída não desgrudava do já gasto crucifixo de madeira. Seu Candinho não aceitava de jeito nenhum as ditas “atividades” “comunistas” do Seu Joaquim que, com toda certeza iria passar a eternidade num lugar bem quente e que nem precisava de fósforos pra acender o cigarro. O terceiro causador de tanta confusão era o sisudo e mal humorado Seu Eliezer, alfaiate de profissão, dos bons, e especialista em cortes italianos conforme declarava o seu cartão de visitas. Como exímio alfaiate que era Seu Eliezer só andava de terno preto, de corte impecável e a inseparável Bíblia debaixo do braço pra cima e pra baixo. Seu Eliezer era, como se chamava naqueles tempos, “crente” e frequentava um culto protestante, diziam, lá pelos lados do Macuco, porém pouco se sabia da vida do homem que morava só. Seu Eliezer, indignado, não aceitava, em hipótese alguma, a idolatria do Seu Candinho por imagens e não admitia de jeito nenhum o materialismo do Seu Joaquim, ateu convicto. A maior parte das confusões acontecia sempre na Quitanda do Emílio, que tinha a paciência de um monge e que dizia sempre, “não tenho time, não tenho religião e nem tampouco partido político, estou aqui pra vender”. Quase todo dia, no final da tarde, lá estava o Seu Joaquim tomando uma branquinha e, livre atirador, provocava, em altos brados, o católico Candinho e o crente Eliezer: – Vocês dois vivem à custa da morte de Jesus. Vocês ganham mais dinheiro do que Judas que ganhou apenas 30 dinheiros com a traição. A traição de vocês é muito mais cara. O valor da religião de vocês está na bufunfa, no carvão, na grana, a mim vocês não enganam. O Homem, para vocês, vale muito dinheiro e vocês continuam a vender bem caro. Seu Candinho e Seu Eliezer respondiam na mesmo moeda, claro: – Você é que é um beberrão, ateu, vive em pecado, quando morrer vai arder no fogo do inferno. – É melhor arder no fogo do inferno do que viver na mentira e na hipocrisia. E, logo, a turma do deixa disso tinha que entrar em ação para separar os desafetos. A turma já nem dava mais atenção às escaramuças dos três, pois, todos sabiam que a paz chegava sempre nas sextas-feiras lá no Terreiro do Seu Arlindo. Havia ali paz e harmonia. Seu Joaquim era cavalo e recebia o Caboclo Tupã da Serra. Seu Candinho batia o atabaque e puxava os pontos e Seu Eliezer era ogã e cambono do Caboclo Tupã da Serra. Ali, no terreiro do Seu Arlindo, meu amigo, a paz estava selada, sempre, até a manhã de sábado na quitanda do Emílio.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


5 Comments Add Yours ↓

  1. JOSÉ ANTONIO SOARES #
    1

    As sempre deliciosas crônicas do meu amigo Renê. Não perco uma… e toca o bonde, de preferência o 37 e em ponto 8 porque estou com pressa.

  2. Marcos Tavares #
    2

    Bravo, Renê!

    Ao fim e ao cabo nenhum deles estava equivocado. Os ateus e os crentes exercitam o mesmíssimo exercício: o da fé. Uns na existência e os outros na inexistência. Em qualquer caso, há de ter muitíssima fé …

    Abraço do companheiro,
    Marcos

  3. Renê Ruas #
    3

    Perfeito meu caro Marquinhos. Há de se ter liberdade para acreditar ou não em qualquer coisa na vida. A sua observação é o resumo
    da questão. Na verdade, como bem diz Millor
    Fernandes, “Em caso de dúvida, duvide.”

    Abraços
    Renê

  4. Renê Ruas #
    4

    Ô Soares falô. Pois é meu velho amigo, vamos
    por aqui tocando o bonde como sempre e tentando, através dessas mal traçadas linhas, manter a memória da nossa gente que,como dizia o Plínio Marcos, berra na geral sem influir no resultado. O barato era, no ponto 8, descer do danado andando.
    É isso.

    Abraços meu velho.
    Renê

  5. Marcello Laranja #
    5

    Esse meu cumpadi Renê não é fraco, não. Eu também era tão católico que só levava vela…rsrsrs…abraços.



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