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BEDEL DO CORAÇÃO

image  “Mulher sempre é mulher, se pede
uma flor a gente lhe dá ela exige
uma estrela e se por acaso não obtê-la”
(Sozinha)

Pois é, com versos simples, lá de Porto Alegre, o homem transforma essa simplicidade em rimas de primeira, “estrela” e “obtê-la”, ao cantar o “causo” de uma mulher que vestia trapos de chitas que trocou por cetim e que fugiu com o doutor que ele mesmo pagou para curar os seus bichos de pé e os versos e as canções do homem simples do Sul se espalhou pelo País. O sonho ou o pesadelo de todo artista, fora de eixo Rio-São Paulo, era o de se mandar para o Sul maravilha, afinal, o vil metal esteve sempre cá por estas bandas. Então vieram os baianos, pernambucanos, cearenses e todos os que faziam música por esse País a fora, a procura de dias melhores e o reconhecimento popular. O tão sonhado sucesso. Hoje não é diferente, porém, a qualidade do que vem pra cá, é nenhuma, já foi tempo que chegava por aqui, Dorival Caymmi, João Gilberto, Luperce Miranda, Maestro Severino Araújo e tantos outros, o que chega aqui atualmente é de embrulhar o estômago. Fico devendo o nome das figuras, pois não tenho nem coragem de falar desses “artistas”. 
Nascido em 1914, dia 19 de setembro, em Porto Alegre, antigo dos Casais, tal qual na canção popular, numa família de 18 irmãos, Lupicínio Rodrigues, ao contrário da maioria dos artistas, fora do eixo Rio-São Paulo, sem sair de seu Estado, se tornou um dos maiores artistas do Brasil e um dos compositores mais importantes da Musica Popular Brasileira.
Sendo o primeiro filho homem da enorme família, Lupi, como era conhecido, foi um menino igual a tantos outros do seu tempo que vivia jogando bola nos campinhos dos terrenos baldios. Apaixonado pela bola logo se tornou uma fanático torcedor do Grêmio, para o qual compôs o Hino. Com doze anos já compunha marchinhas para os Blocos carnavalescos do seu bairro. Adolescente, logo passou a frequentar os bares onde ficava bebendo e cantando com os camaradas até tarde da noite. Preocupado com o talento do filho para a boemia, “Seu” Chico não teve outra saída, apresentou o menino como “voluntário” no exército. Mesmo assim Lupi continuou a compor marchinhas para os blocos de rua. Dando baixa do exército, como Cabo, em 1935, Lupi consegue um emprego de bedel na Faculdade de Direito.
Em 1937, Lupi alcança sucesso nacional com o samba “Se acaso você chegasse” (com Felisberto Martins) gravado pelo cantor Cyro Monteiro. A partir desse estrondoso sucesso Lupicínio nunca mais precisou sair do Rio Grande do Sul para se tornar um nome nacional.
Em 1939, Lupicínio viaja para o Rio de Janeiro onde fica amigo de Germano Augusto, Wilson Batista, Kid Pepe, Ataulfo Alves e outros. Conheceu ainda o já famoso e grande cantor Francisco Alves que se tornou um dos seus principais intérpretes.
Com a simplicidade dos gênios, Lupicínio Rodrigues soube como ninguém captar a alma dos que sofrem por amor e desamor, ilusão e desilusão, traição ou bem querência. Lupi sempre falou e cantou direto ao coração do povo brasileiro, sem meias palavras, sem precisar de metáforas ou truques. A vulgaridade, ao falar dos amantes e das traições, passava bem longe, passava do outro lado da calçada.
No clássico “Cadeira Vazia”, ao receber a mulher amada de volta, Lupi diz, “Voltaste, estás bem, estou contente” – para em seguida, de forma definitiva, revelar, “Vou te falar de todo coração, eu não te darei carinho nem afeto, mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto, pra te alimentar, podes comer meu pão.”
Alguns entendem que a importância de Lupicínio está na criação da chamada música de “dor de cotovelo”, claro está que, Lupi é muito mais que isso, ele está entre os maiores e mais importantes compositores da música deste País. Lupi construiu uma obra fundamental para quem quer entender a alma do povo brasileiro.
No clássico “Nervos de Aço” – magistralmente gravado pelo não menos fantástico Jamelão – ele pergunta: “Você sabe o que é ter um amor meu Senhor?” Ter loucura por uma mulher e encontrar esse alguém, meu senhor, ao lado de um tipo qualquer?” – para em seguida responder – “Eu só sei que quando eu a vejo, me da um desejo de morte ou de dor.”
Alertando um amigo prestes a casar, em “Esses Moços”, Lupi compôs uma beleza e com isso arranjou uma boa briga com a noiva do colega – “Esses moços, pobres moços. Ah! Se soubessem o que eu sei, não amavam, não passavam aquilo que já passei.”
Certa vez Lupicínio confessou que compôs a bela “Vingança” – gravada por Linda Batista – porque estava naquela “dor de cotovelo” eterna. Nesta composição, ele não dá moleza – “Ela deve estar bem consciente do que praticou me fazendo passar tanta vergonha com um companheiro” e prossegue “e a vergonha é a herança que meu pai me deixou” – diz mais – “Eu não quero mais nada, só vingança, vingança aos Santos clamar” – para arrematar de forma definitiva – “Ela há de rolar como as pedras que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.”
E assim vai o nosso Lupi, cada canção uma surpresa, casa verso um encantamento. É quase impossível dissecar a obra do mestre, pois, na certa, daria um belo tratado sobre tristeza, alegria, amores, traição, amor eterno, casamento desfeito, ingratidão e todos os sentimentos que envolvem a vida. Lupicínio foi um mestre na tradução da vida dos que amam. Poderia ainda comentar, através de uma centena de composições, as amarguras da alma humana que Lupi conseguiu, de forma magistral, traduzir em belas canções.
Lupicínio Rodrigues que, ficou como tantos mestres, no limbo durante a bossa nova, jovem guarda, tropicália e, ainda, durante todas as boas e péssimas fases da música popular, ressurgiu nos anos 70, aliás, um renascer efêmero, pois faleceu em 1974, deixando um acervo maravilhoso para o Brasil, sem nunca ter saído do amado Rio Grande do Sul.
Recomendo ao amigo ouvir a grande obra do Lupícinio Rodrigues, seguindo o fraterno convite ao amigo que ele fez no envolvente “Cevando o amargo”.
“Amigo, boleia a perna
Puxe o banco e vá sentando
Descansa a palha na orelha
E o crioulo vá picando
Enquanto a chaleira chia
O amargo vou cevando

Foi bom você ter chegado
Eu quero lhe falar
Um gaúcho apaixonado
Precisa desabafar
Chinoca fugiu de casa
Com meu amigo João
Bem diz que mulher tem asa
Na ponta do coração
Lupicínio Rodrigues sabia das dores do coração. Bedel do coração.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


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