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RAINHA DOS PAPACOS

CARTA TAROVilma era toda pelo maridão, o Durval. Era Deus no céu e o maridão na terra. O assunto da Vilma, claro, era o maridão. Que marido igual não havia. Durval era festeiro e carnavalesco. Era tipógrafo. Quando havia tipografias. Casadinhos de novo, moravam no quarto da frente do chalé do Seu Henrique, irmão do Daniel Feijoada.
Durval, galã do pedaço, era alto, olhos claros, andava pra cima e pra baixo com o Manivela, amigo de todas as horas. Manivela, negrão forte e de risada larga, tinha um defeito no braço daí o apelido. Manivela trabalhava no caminhão do Xinxinha fazendo entrega de cerveja no tempo dos engradados de madeira, no tempo que coxinha tinha ponta e elevador tinha ascensorista. Morava só num quartinho numa casa de cômodos quase ali no canal 1 e às vezes era metido a filósofo. Em frente a farmácia do Seu Romeu, lá estava o nosso pensador Manivela lascando o verbo ao Geraldão depois da passagem de um carrinheiro puxando a carroça carregada de entulhos:
- Nos tempo da inguinorança o burro é que puxava a carroça, hoje nos tempo da modernagem o homem é que puxa a carroça!
Era assim mesmo meu caro amigo carnavalesco. Durval e Manivela eram unha e carne, corda e caçamba sem trelha nem trabelha, amigos de copo e mesa. Vilma não reclamava e até incentivava a amizade dos dois.         
Todas as tardes, quando o sol já se escondia ali por trás do morro do Marapé, Dona Maria, Dona Líbia, Dona Zilda, Dona Lídia(as duas) se reuniam no portão, depois da hora do Ângelo, é claro, pra falar
do dia a dia, da roupa que secou, da comida que fez, que faltou carvão pro ferro de passar roupa, que o gelo pra geladeira não foi entregue e da espinhela caída de um, do bucho virado de outro, do mijacão no pé do Zezinho e a vida seguia assim.
O que elas gostavam mesmo, porém, era quando a Vilma fazia parte da conversa, pois, o assunto era sempre o mesmo, o maridão Durval. Todo dia Vilma trazia uma novidade. Ontem o Valzinho (era assim que ela chamava o maridão) foi demais, tanto é que hoje estou um caco. Todo dia tinha um assunto sobre o Durval que matava a mulherada de inveja. Vilma demonstrava isso, pois estava sempre feliz, com o sorriso largo de quem botou o paio na dobradinha.
Estava sempre de bem com a vida. Passado alguns dias, a euforia de Vilma estava acima do normal e o pessoal quis logo saber.
Vilma foi logo explicando, com aquele sorriso maroto de quem viu passarinho verde:
- Essa noite o Valzinho foi demais, passou dos limites. Foi barba, cabelo e bigode. Serviço completo.
E assim os dias iam passando e a turma tocando o bonde e a vida. Uma tarde daquelas Vilma não apareceu e daí em diante passou a ficar mais em casa, quase não saia. Dona Líbia, observadora, logo percebeu que alguma coisa estava acontecendo. Vilma quando aparecia já não demonstrava mais aquele sorriso, pouco falava do tão amado Valzinho e sua alegria se transformou numa estranha tristeza. O povo do pedaço passou a se preocupar com a Vilma. O que houve? O que esta acontecendo? Será que o Durval está metendo a mão na Vilma, ou pior, será que ela descobriu alguma amante?
Não adiantava, ela não reclamava e nem falava mais sobre o tão amado maridão.
Vilma, quando saia, pra ir até a quitanda do Emílio ou na Lojinha, pois que era exímia costureira, passava de cabeça baixa olhando para o chão, algumas vezes, notaram, que passava também falando baixinho como se conversasse com alguém e isso deixou o povo preocupado, mas ninguém tinha coragem de perguntar nada.
Dona Odila, de tanta preocupação, certo dia perguntou o que estava acontecendo e Vilma desabafou:
- Sabe Dona Odila, o Valzinho não me procura mais, fico semanas a seco, sem saber o que é uma chamada na paleta, sem carinho nem nada. Ontem, meio ressabiado, contou que está com uma tal de crise existencial e que o universo é infinito essas coisas.
Dona Odila com aquela grossura carinhosa emendou de primeira:
- Vilma minha filha, muito cuidado com essa tal de crise existencial que isso aqui, no Marapé, é sintoma de quem quer morder a fronha, falta de beijo na nuca, essas coisas. Não sei não, será que o Durval depois de burro velho anda enfornando um robalo ou queimando a rosquinha? Eu acho que o teu galo anda pintando o bico. Vê lá minha filha.
O tempo passando eis que chega o carnaval. Bem sabe o amigo velho, que, no carnaval, a máscara cai e por essas e outras é que a turma descobriu o desatino da Vilma e se confirmou as sábias palavras de Dona Odila.
Em pleno desfile do Bloco das Misses eis que surge o nosso Durval fantasiado de Miss Brasil de salto alto e o cacete. A mais bela miss do carnaval daquele ano. Vilma até achou bonito. O desespero maior da Vilma, meu bom, foi ver o maridão Durval desfilando no Bloco dos Papacos, numa bela fantasia de Rainha dos Papacos ao lado do Príncipe Manivela. Aí a cobra fumou, o tatu subiu no pau a porca torceu o rabo e a sorridente Vilma endoideceu de vez. Andava pelas ruas, sozinha, falando baixinho e foi indo cada vez mais longe, cada vez mais longe até desaparecer do bairro.
Durval, curado da crise existencial, se mudou de mala e cuia para o quartinho do Manivela. Passava os dias lavando, passando e cozinhando. Rainha dos Papacos. Rainha do Lar. É isso mano, se vê que vai cair, deita

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


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