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BARCTÉRIA

drunksailorEra um sujeito sonhador, o Paulo. Sonhava com estrelas e pôr do sol. Tinha sempre uma palavra de conforto. As coisas se ajeitam, o corcunda sabe com deita, dizia.
Era assim o tempo todo. Incorrigível otimista. Tem jeito pra tudo nessa vida. Não entrava em confusão, nunca. Não discutia, não brigava com ninguém e não levantava a voz, jamais. Por tudo isso, explicava, eu levo desaforo pra casa. E levava desaforo pra casa com a tranqüilidade e a paz dos monges.
Paulo fazia parte da turma ali da Rua Nove de Julho com a Rua Alberto Veiga, jogava bola, não muito e, como todos os moleques da rua, era frequentador assíduo das aulas de socialismo do Seu Joaquim, pai do Cabeleira. A programação da turma era o chamado BBZ, ou seja, bola, baile e zona. Todo sábado o pessoal se reunia na casa do Cabeleira pra ouvir o Seu Joaquim falar das excelências do comunismo soviético. A União Soviética era a mãe de todos os povos e Stalin o pai. O comunismo iria salvar a humanidade de todas as misérias, desde unha encravada até o não sei pra que o homem na Lua. A turma ouvia que ouvia e era um tal de mais valia pra cá, exploração do homem pelo homem pra lá, capital e trabalho, tudo isso regado com muita cerveja, cachaça, jurubeba e tudo mais que fosse líquido, menos água, é claro. Seu Joaquim, o nosso professor de comunismo, era estivador aposentado. Formou na estiva lá pelos idos de 30, 40. Tempos duríssimos do Estado Novo. A cidade era rebelde. O porto era rebelde. Seu Joaquim, assim como tantos outros estivadores, se negava a trabalhar nos navios da odiada bandeira nazista ou nos navios da Espanha do ditador Franco. Embarque de café para esses Países nem pensar.     Os estivadores se negavam a entrar nesses navios. O novo homem estava na União Soviética. Todos seriam livres e todos teriam os mesmos direitos. Um mundo sem divisão de classes, sem fome e sem miséria. Quem bom! Por sua rebeldia a cidade pagou muito caro. Apenas uma coisa a turma não conseguia entender, pois era muito estranho. Seu Joaquim, no dia-a-dia comunista ferrenho e, na sexta-feira cavalo no terreiro do Seu Maneco. O fundo musical ou a trilha sonora das aulas como sempre, Silvio Caldas, Orlando Silva, Carmem Miranda, Francisco Alves e todos os cantores da dita época de ouro da Rádio Nacional.
Paulo, todos perceberam, era o mais atento e o mais sério aluno do Seu Joaquim. Se existe algum modelo que vai exterminar a miséria, a fome e a injustiça, então é isso. Era isso que queria. Na realidade, o nosso quase monge Paulo, se identificava com a novidade, pois se preocupava com as pessoas, ajudava no que fosse possível, estava sempre disponível, isso desde pequeno.
Depois das aulas do Seu Joaquim, todos já devidamente calibrados pelos vapores etílicos, partiam pra luta, e, o palco, sem dúvida, era a zona. Era o tal BZ do BBZ. È isso mesmo, baile e zona, que bola tinha rolado à tarde. Viagem direta pra Tia Ivone no doissetecinco da velha Rua General Câmara. Troca de óleo de praxe. Todo mundo de bateria carregada partia pra ver e aplaudir os grandes bailarinos do Samba-Danças. Nego Orlando, Valdir, Sabará, Nelsinho Boneca, Seu Jumba, Irani e tantos outros. Depois de aplaudir os mestres do salão sagrado, já no final da madrugada, a caravana seguia para o Barctéria. O Barctéria, botequim de respeito, conhecido também como Tira o olho do meu prato ou Pé sujo, era comandado pelas mãos de ferro enferrujadas do português Oliveira. O bar era muito pequeno e de tão pequeno ficava impossível de se trocar idéias. Não tinha espaço. Uma única geladeira no canto, pintada de ferrugem, gelava a cerveja, não muito, porém a cachaça era da boa e derrubava o cristão em questão de minutos. A serragem espalhada escondia o chão encardido pela gordura. A turma dizia: Oliveira o chão do teu bar é mais sujo que consciência de político! É isso mesmo, não via água desde o final da segunda guerra, quando o Oliveira abriu o nosso Barctéria. Se me permitem, o cardápio era o de sempre, ovo cozido de todas as cores e procedências. A salsicha para o cachorro quente era bem tratada pelos dedos fortes do Oliveira que substituíam com graça e elegância a tão manjada dupla garfo e faca, porém, o mais famoso sanduíche, o campeão de bilheteria, o mais pedido por estivadores e doqueiros nas madrugadas, era sem dúvida o Fardo de Algodão. O tal sanduíche tinha uns vinte centímetros de pé direito. Seis fatias de pão de forma e entre elas, mortadela, ovo frito, carne assada (Deus sabe como!), queijo, lingüiça e tudo mais que o sobrevivente conseguisse comer sem baixar enfermaria. Oliveira era o próprio mau humor em pessoa. Calças arregaçadas e tamancos de descer ladeira, ou seja, o salto pra frente. As unhas estavam sempre de luto fechado. É bom esclarecer, a bem da verdade, que o nome do nosso botequim era “Lisboa Antiga”, porém, pelas qualidades acima ficou conhecido por todos como Barctéria.
Pois é, camaradas, foi aí, em pleno território do Oliveira, que o Paulo expôs pela primeira vez os seus planos de contra revolução, planos pra derrubada do regime a partir do Marapé.
Depois de um discurso movido por vapores etílicos, exaltando o poder do povo, Paulo propôs a derrubada do presidente da Sociedade de Melhoramentos do Bairro colocando em seu lugar um companheiro comprometido com o socialismo e as causas do povo e a partir da tomada da Sociedade levar a luta pra toda Santos e daí para o País inteiro. Propôs o nome de Daniel Feijoada e, claro, foi aprovado por todos.
Paulo, o rebelde mais atuante, depois de uma porrada de cerveja, emocionado, de punhos cerrados, conclama a rapaziada:
“Camaradas, o Marapé conta com a nossa luta. Marapeanos uni-vos. Não podemos perder o bonde da história.”
Não perdemos. Pegamos o bonde trinta e sete e voltamos rapidinho pra casa. Domingo cedo tinha jogo do Nove de Julho Futebol Clube e, afinal mano velho, a gente sempre pega o bonde de volta pra casa.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


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