DE COMO O CHORO MUDOU DE CARA
por Nei Lopes
Numa visão esquemática das condições gerais da sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII, vamos observar, dominando a paisagem da casa-grande da fazenda e ao redor dela, a senzala dos escravos, a capela e, raramente, uma escola. Nesse quadro, o lazer dos abastados era centrado na Igreja e proporcionado pelos escravos, inclusive a música. Porque, durante todo o tempo que durou a ordem escravista, a atividade de instrumentista musical foi, no Brasil, atribuição típica de negros, escravos de ganho ou libertos. E até os anos sessenta do século XX, foram os afro-brasileiros os arquitetos do som e do ritmo deste país, inclusive e principalmente do Choro, esta “flor amorosa”. Mas de repente, os negros foram sumindo. Notadamente dos grupos instrumentais, como os de Choro. Por quê? Musicos Executantes – Em 1610, um fazendeiro do Recôncavo baiano brindou e pasmou o viajante francês Pyrard de Laval com a audição de uma banda de música composta por cerca de trinta escravos, regidos por um maestro europeu. Tempos depois, no Rio, na Real (depois Imperial) Fazenda de Santa Cruz, padres jesuítas criavam uma escola de música onde trabalhadores escravizados aprendiam noções rudimentares de teoria e execução geral de instrumentos. De princípios a meados do século XVIII se inicia, em Olinda, Pernambuco, a fabricação de instrumentos de sopro e corda. E, na Bahia, a irmandade de Santa Cecília obtém o “monopólio do exercício da arte musical”, fundando, lá, vários centros de cultura artística. Na esteira desses acontecimentos, em 1745, no Recife, o Frei Manoel de Deus assistia, na capela da Sé, uma exibição de um grupo de músicos negros que brilhavam na execução de instrumentos europeus. E, no Rio, em 1748, outro religioso, o padre francês Courte de La Branchardière, expressava sua curiosidade em relação ao som das rabecas, tocadas por negros. Na virada do século XVIII para o XIX, os membros da família de João Alves Feitosa, o mais rico proprietário agrícola do Ceará, em suas visitas à capital, faziam-se sempre acompanhar por uma banda de escravos. Da mesma forma que o Imperador Pedro I manteve na Quinta da Boa Vista, com músicos principalmente oriundos de Santa Cruz, a chamada “Orquestra dos Pretos de São Cristóvão”. E, na Bahia, em Feira de Santana, por volta de 1865, a fazendeira Raimunda Porcina de Jesus mantinha, com fins lucrativos, uma banda de música na qual até mesmo o maestro era seu escravo. Dessas bandas rurais (que alguns proprietários empresavam) às famosas “bandas de barbeiros” das grandes cidades, e chegando até as bandas militares como a do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, organizada em 1896, a música do povo brasileiro conheceu, sempre, grandes instrumentistas pretos e pardos. E, a partir da virada para o século XX (e aqui não nos referimos aos músicos ligados à Igreja, que também são numerosos), revelou, também, grandes compositores, arranjadores e regentes, entre os quais os fixadores daquilo que viria a ser o Choro. Criadores Músicais – Organizador da Banda do Corpo de Bombeiros do RJ e contemporâneo dos eruditos afro-brasileiros Henrique Alves de Mesquita (1830-1906) e Adelelmo Nascimento (1852-1898), o negro Anacleto de Medeiros (1866-1907) foi, além de executante de vários instrumentos de sopro, compositor e orquestrador, sendo unanimemente considerado o criador do xote brasileiro. Quinze anos mais moço que Anacleto, outro grande expoente da criação musical afro-brasileira na virada do século é Patápio Silva (1881-1907) que, em 1903, recebia diploma e medalha de ouro do Instituto Nacional de Música. Legítimo sucessor do grande flautista mulato Joaquim Antônio Callado (1848-1880), que introduziu nos salões o lundu das senzalas – no mesmo momento em que Chiquinha Gonzaga (1847-1935), filha de mãe solteira e mestiça, abrasileirava a polka europeia e dela fazia nascer o maxixe – Patápio representa a fronteira entre a música do povo brasileiro e a música erudita, de extração europeia. Mas, entre todos, o mais festejado criador musical afro-brasileiro é Pixinguinha (1897-1973), notável compositor, orquestrador e regente, músico absolutamente original. E de seu tempo são, entre outros, os não menos notáveis Candinho do Trombone (1879-1960), Sebastião Cyrino (1902-1968), Donga (1889-1974), Moleque Diabo (m.1938), Bonfiglio de Oliveira (1894-1940), Quincas Laranjeiras (1873-1935) e Paulino Sacramento (1880-1926). Depois desses, o Choro conheceu Claudionor Cruz, Astor Silva, Porfírio Costa, K-Ximbinho, Arlindo Ferreira, Moacyr Santos, Raul de Barros, Norato, Carioca, Manuel da Conceição, Toco Preto, Bola Sete, Darly Louzada, Neco, Zé Menezes, Paulo Moura, Juarez Araújo – e inúmeros outros que se tornaram responsáveis pela linguagem que dominou a vida musical brasileira, dos anos 30 aos anos 60, no disco, no rádio, no cinema, nos bailes, nos shows e na nascente televisão. Até que a bossa-nova, primeiro, depois o renascimento do Choro nos anos 70, “dignificaram” a profissão de músico, antes uma atividade predominantemente exercida por negros e pobres, descendentes dos escravos das fazendas e dos músicos-barbeiros de antanho. Outras Mãos, Outra Cara – Com a mudança da ordem econômica no país, a partir de 1888, o mercado para o músico essencialmente popular ficou restrito. Viver de música, só como organista de igreja ou nas orquestras de teatro ou dando aulas para as filhas das famílias mais abastadas. Então, a música à base de flauta, violão e cavaquinho – a mais característica do Choro carioca – que não requeria conhecimentos teóricos elaborados, passou a ser o lazer dos músicos diletantes, dos funcionários públicos, dos que tocavam só “a bem da bóia”, como se dizia nos tempos de Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal. Esse quadro só começaria a se reverter a partir do sucesso do Pelo Telefone, em 1917, e com a consequente desvinculação do direito autoral do âmbito da arrecadação teatral, controlado pela SBAT, o que viria a ocorrer apenas nos anos 30. A partir daí, o rádio começa a absorver boa parte dos músicos de extração popular. É nessa chamada fase áurea da música popular brasileira, que vão brilhar aqueles nomes acima referidos como K-Ximbinho, Claudionor Cruz, etc. Porém, muito mais que os instrumentistas, vão sobressair os cantores, já que nessa época o primado é da canção, em suas mais variadas formas. A questão central deste artigo, então, é aqui que se coloca. No momento que, no Brasil, a atividade musical, antes exercida primordialmente por negros (pretos e mestiços), passa a ser, em termos industriais, uma das mais rentáveis do mundo, por que quase não se vê mais instrumentistas negros nem nos regionais de Choro? Um princípio de resposta parece ser o fato de que, no Brasil, a massa negra, em termos de mercado de trabalho, ainda está na base da pirâmide. Assim, a um músico afro-brasileiro, de um modo geral, o exercício da atividade musical por mero lazer, como nos tempos de outrora, não faz nenhum sentido. O que conta é a música como veículo de ascensão econômica e social. Mas aí surge o impasse e o dilema. Os filhos das classes mais abastadas que vieram para a música depois que a bossa-nova colocou em suas mãos o violão (e depois a guitarra, e mais tarde o cavaquinho), em geral dispuseram de tempo e dinheiro para frequentar escolas de música, inclusive em nível universitário, e/ou pagar professores, o que não ocorreu na mesma medida com os da base da pirâmide. Dessa forma, “dignificada” a profissão de músico, eles entraram no mercado de trabalho melhor equipados e involuntariamente dificultaram aos afro-brasileiros um dos seus históricos canais de ascensão social. Pois foi assim, a partir basicamente da Zona Sul carioca – primeiro de Copacabana e Ipanema e, depois da região de Laranjeiras, Botafogo e adjacências – que a música instrumental brasileira foi mudando de mãos e de cara. Muito mais Tom Jobim que Johnny Alf, por exemplo. Com relação ao Choro, ela continua sendo ótima, uma das melhores do mundo, principalmente porque se alimenta da tradição. Mas, quer queiram, quer não, o Choro hoje tem também outra cara. É mais, num outro exemplo, a do meu amigo e parceiro Luis Filipe de Lima que a do meu querido compadre Carlinhos Sete Cordas – esses dois virtuoses do violão brasileiro a quem dedico, sem distinção, o melhor da minha afeição, da minha sincera amizade; e as reflexões deste artigo ** Nei Lopes, 72 anos, é compositor, escritor, poeta, pesquisador e sambista, ligado as escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro e Unidos de Vila Isabel. Este artigo tem como referência bibliográfica principal o livro de José Ramos Tinhorão – “Música Popular Brasileira: de índios, negros e mestiços” (Petrópolis, Vozes, 1972).
O Clube do Choro de Santos se sente honrado e orgulhoso por ter no seu Blog o mestre Nei Lopes que, atendendo o pedido deste escriba,
nos proporcionou o artigo ao lado que propõe
uma reflexão acerca dos caminhos do Choro
principalmente com relação a ausência de negros nos grupos musicais de Choro, quando pergunta. “Por que quase não se vê mais instrumentistas negros nem nos regionais de Choro?
Velhote, seja bem-vindo.
Abraços
Renê Ruas
Mestre Nei Lopes seja muito bem-vindo ao blog do Clube do Choro de Santos. Temos procurado utilizar essa ferramenta como um canal aberto, plural e democrático, principalmente para os amantes do choro e da boa música brasileira. Sempre que possível faça sua crítica, opine e, sobretudo, participe, pois para nós é uma imensa honra.
Parabéns pelo tema trazido a reflexão neste artigo, pois o mito de que não há problema racial no país permanece vivo, mormente no discurso do “senso comum”.
Luiz Pires – Vice Presidente
O Nei é um farol em meio à bruma dos mares sombrios da cultura nacional
Mestre Nei Lopes, muito bem-vindo ao Clube do Choro de Santos, é uma honra tê-lo conosco, sem dúvidas, um privilégio ter um artigo seu publicado no nosso blog.
Forte abraço.
Marcello Laranja – presidente.