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SALÃO DOIS DE OURO

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Era sempre assim, mais ou menos de dois em dois meses, quando sobrava alguma merreca no bolso do pai, lá ia o moleque que nem siri dentro de lata cortar o cabelo no Salão Dois de Ouro, a Barbearia do Toninho. O pai mandava e pronto, não tinha ora-pois-pois nem depois eu vou. O pai falou tá falado. O corte de cabelo mais odiado da molecada, o tal do topetinho. Cabeça raspada, máquina zero e na frente um pouquinho de cabelo, o ridículo topetinho e não era moda não, era falta de dinheiro mesmo, dureza. Nos dias de hoje ninguém quer saber mais de ser barbeiro, é coiffeur pra cá, coiffeur pra lá, viadagem sem tamanho. Voltando a vaca fria. No salão pequeno, duas cadeiras, um monte de revista velha e bem escondido o proibido catecismo do escritor mais procurado pela molecada, Carlos Zéfiro.  A cadeira do Toninho, o dono, era um pouco mais nova e a do Ignácio, o zeloso funcionário, nem tanto. Ignácio, exímio nas artes da navalha e da tesoura, especialista na barba, cabelo e bigode, gostava mesmo era de beber água nas orelhas dos outros, falava mais que a preta do leite, falava pelos cotovelos. Até hoje não consigo entender o que a mãe queria dizer com isso. Falar pelos cotovelos. A molecada gostava mesmo era das histórias do Ignácio. Fregueses mais antigos nem tanto, e, alguns com o saco cheio das mesmas e intermináveis histórias do Ignácio, enfiavam um discreto tufo de algodão no ouvido, mais conhecido como barreira anti abobrinha e dormiam à sono solto. O homem disparava a falar e não parava mais como se tivesse bebido água de chocalho. O velho Ignácio ficava indignado com tal desprezo, porém, ficava na miúda, pois, como sempre dizia: passarinho na muda não canta.             Ignácio, primeiro e único funcionário do salão, além de abrir e fechar o salão, manter a limpeza do local, era o responsável pela alimentação dos curiós e dos coleirinhas. Como era pau pra toda obra ou levanta Mané que o café ta coado, Ignácio, nas horas vagas, engraxava sapatos da freguesia pra engordar um pouquinho o tão minguado orçamento. Junto com as gaiolas na parede, Toninho, orgulhoso, mantinha também antigas fotos do Jabuca, da Burrinha, do Santos, do bonde 37 e, claro, do Bloco das Dengosas e da Embaixada de Santa Teresa, amores pra toda vida. Toninho que todos tinham como um homem sério que pouco sorria, estavam enganados, pois, na verdade, o homem era um grande gozador. Sempre tirava algum mané pra pato sem dar um sorriso. Todo sábado, pontualmente, às oito da manhã, surgia por lá pra fazer a barba e aparar o quase nenhum cabelo, o Senhor Pereira. Alto funcionário da Prefeitura de Santos, senhor de fino trato e respeito, Senhor Pereira usava sempre, pra espanto de todos, sem razão aparente, um paletó de puro linho, azul turquesa capaz de ofuscar os olhos do desavisado cristão. Não, não era, na verdade, um azul qualquer, era um azul alegórico de doer os olhos. O paletó azulão, divinamente cortado pelas mãos mágicas do velho Tenente Alfaiate não saia nunca dos ombros do Senhor Pereira. Um mistério até hoje. Por essas e outras é que descobriram que o homem odiava o apelido dado lá na Prefeitura. Pereira Azulão. O tal fino trato desaparecia se, por um acaso, um desavisado chamasse o homem de Pereira Azulão. Seu Pereira saia no braço, partia pra porrada, pra vias de fato com quem fosse. Toninho, grande gozador, além, dos curiós e coleirinhas, comprou outro passarinho, bonito e cantador. Um azulão. E, pra aporrinhar mais a vida do homem, arranjou, sei lá como, uma tartaruga azul. Dizem que, muito puto da vida, o Senhor Pereira nunca mais freqüentou o Salão Dois de Ouro. Naquele pequeno salão se sabia da vida de todos. Quem andava com quem. Quem comia quem. Quem morreu. Quem estava doente. Quem estava devendo na padaria, no tintureiro ou no açougue. Segredo para o bairro todo saber era só dar uma palavrinha no Salão Dois de Ouro. Bem sabe o amigo que, no tempo do fio de bigode, do guaraná champanhe, todas as boas casas do ramo vendiam seus produtos na confiança. Todos os fregueses tinham suas cadernetas, onde se marcava o que era consumido e no final do mês a conta era paga, sem juros, é claro, zerando a respeitada cadernetinha. Era um tempo de fiado todo dia. Ignácio, que tinha ouvidos de tuberculoso e sabedor de tudo o que rolava pelos arredores contava com detalhes a última do português Seu Mendes. Seu Mendes, português simpático (nem sempre) e até barateiro (raríssimas vezes), mantinha um rígido controle do estoque do seu armazém de secos e molhados. Era assim que se chamavam os pequenos armazéns. Nesses armazéns se vendia de tudo: feijão, arroz, bacalhau, azeite, manteiga e até a mãe, que não era entregue, pois que já estava alugada. Contando o acontecido aos clientes da barbearia, Ignácio dizia que num certo dia, Seu Mendes de bandeira arriada, com o barco à deriva, pois na noite anterior tinha bebido quase todo o estoque de vinho do Porto, não podendo trabalhar, foi substituído à altura pela patroa Dona Leonilda. Dona Leonilda, mais acostumada com os segredos da cozinha, vendeu uma lata de azeite português, daqueles de comer com pão e, meio atrapalhada, deixou de marcar na caderneta do freguês a venda do azeite, ficando o dito pelo não dito, Benedito. Passado alguns dias, Seu Mendes, que tinha o estoque de todos os produtos na cabeça, deu por falta de uma lata de azeite na prateleira. Perguntou pra patroa, Dona Leonilda, que devido ao tempo passado, não se lembrava mais pra quem tinha vendido o produto tão apreciado. O velho Mendes esbravejou, bateu portas e janelas, subiu nas tamancas e, por inspiração lusitana não se fez de rogado, marcou uma lata de azeite em cada caderneta. Alguém vai reclamar, explicou. Contou, ainda, o Ignácio que, nesse golpe de mestre, teve freguês que nem reclamou. Bem espertinho esse Seu Mendes. Pois é, depois de tantos cabelos cortados, barbas aparadas, escanhoadas, muito água velva, talco e álcool, a Barbearia do Toninho encerrou suas atividades levando junto o Ignácio, os passarinhos, as fotos e as revistas velhas. O Salão Dois de Ouro não resistiu e se transformou na Maison Blue Gardênia Hair Style.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


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