“E assim adormece esse homem que
nunca precisa dormir pra sonhar …”
O menino, ali no fundão, no pé do morro, ouvia todos os barulhos e sons das ruas, dos botecos, das varandas e dos quintais. De um lado ouvia, lá no Seu Landulfo, valsas e chula raiada. De outro lado ouvia seresteiros e chorões, com seus bandolins, violões e cavaquinhos, lá no chalé do Seu Lili e, ainda lá em cima, no morro, ouvia os tambores do Candomblé de Dona Neném.
De todos os sons o coração do menino se encantava mesmo era com a vitrola mágica do Seu Euclides, vizinho do Pai.
Certo dia, no final da tarde, o coração do menino desalinhou quando ouviu misteriosa voz numa estranha canção tão misteriosa quanto a voz que tocou na vitrola mágica do Seu Euclides:
“No Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca, ô de areia branca, ô de areia branca. De manhã cedo se uma lavadeira vai lavar roupa no Abaeté, vai se benzendo porque diz que ouve, ouve azoada do batucajé, ou do batucajé. A Lua se enamorando nas águas do Abaeté, credo, cruz, te desconjuro, quem falou de Abaeté.”
A voz forte e misteriosa deixou o menino sem dormir naquela noite, sonhando que ficou com azuada do batucajé. Assustado, o menino sentiu o coração bater descompassado dentro do peito e mesmo assim, no dia seguinte, bem cedinho, correu para a casa do Seu Euclides que, fazendo sempre todas as vontades do curioso menino, pôs na vitrola o disco da musica misteriosa e a voz forte invadiu o chalé e o fundão.
“É noite, é noite. Ê lambaê ê lambaio, ê lambaê, é lambaio, ê lambaê, é lambaio, ê lambaê, é lambaio.
Pescador não vá pra pesca, pescador não vá pescar, pescador não vá pra pesca que é noite de temporal.”
Foi assim que o menino se encantou quando ouviu pela primeira a voz misteriosa de Dorival Caymmi.
E assim é que neste ano se comemora o centenário de Dorival Caymmi que nasceu em Salvador, na Bahia, em 30 de abril de 1914.
Dorival ainda muito jovem se interessou pelo violão, pois que seu pai, Durval, tocava piano, violão e bandolim e começou a tocar sozinho um violão com acordes estranhos, arrevesados que eram motivos de broncas. Com 23 anos pegou um Ita no Norte e veio pro Rio morar, adeus meu pai, minha mãe, trazendo, além do tatu-bola, filho do tatu-bolinha, vinte sacos de farinha, uma pequena mala e o famoso violão que ele tocava arrevesado inventando uma nova maneira de tocar o violão. Harmonias e acordes pré-bossa nova garantem os especialistas e pesquisadores.
Além da voz forte e do violão, Caymmi trouxe nos olhos e na alma todo o mar da Bahia, minha jangada vai sair pro mar, quem vem pra beira do mar nunca mais quer voltar, é doce morrer no mar, a jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento, a jangada voltou só, vamos chamar o vento, você já foi a Bahia? Então vá, quem não gosta de samba bom sujeito não é e olha que o mar é imenso, um oceano inteiro veio com o poeta da Bahia. Caymmi trouxe ainda na bagagem do coração o pescador que tem dois amores, um bem na terra um bem no mar, na sodade matadeira o coqueiro de Itapoã, areia de Itapoã e ensinou quem quiser vatapá que saiba fazer, advertindo ainda, lá vem a baiana de saia rendada, sandália enfeitada vem me convidar para dançar. Como disse Tárik de Souza, “Ele é um dos pontos cardeais de uma MPB atemporal, esculpida pelos elementos básicos. O vento que enfuna a vela, o mar que carrega o barco, o fogo feminino do estro sestroso e a terra em que o pescador Carapeba – batizado como João Valentão – nem precisa dormir para sonhar”. Caymmi não foi só para Maracangalha, de jangada foi navegar pelos altos mares do mundo com sua música, acompanhado por muitas musas, Marina, Tereza, Dora, Gabriela, Doralice, Adalgiza, Francisca dos Santos Flores, Rosa Morena, Maria Amélia e muitas Maricotinhas com seus vestidos de bolero, lero, lero, além das que tiram o juízo do homem que vai trabalhar e que dez horas da noite na rua deserta a negra mercando parece um lamento.
Caymmi nos contou ainda sobre as 365 Igrejas de Salvador, além dos segredos da Senhora do Mar e Mãe Menininha, ele mesmo um Obá de Xangô.
Em 1939, Caymmi conhece a cantora Stella Maris, de nome Adelaide Tostes, cantando num programa de calouro da Rádio Nacional o “Último Desejo” de Noel Rosa e se apaixona, casando já em 1940, tendo com ela três filhos, Nana (1941), Dori (1943) e Danilo (1948).
Dorival Caymmi, assim como encantou aquele menino, lá no pequeno mundo no pé do morro, sem dúvida alguma encantou o coração de uma infinidade de outros meninos por esse Brasil à fora.
Na sua derradeira canção, doida canção, Dorival Caymmi resume o seu amor pela sua arte quando diz: “Doida canção que não fui eu que fiz.”
Eis ai a derradeira canção – SARGAÇO O MAR
“Quando se for esse fim de som,
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz, verde cor de arrebentação
Sargaço o mar, sargaço o ar
Deusa do amor, deusa do mar
Alucinado desesperar
Quero morrer pra viver com Iemanjá.”
Ah! Ai que saudade eu tenho da Bahia. Através da musica de Dorival Caymmi o menino chegou a ter muitas saudades da Bahia sem nunca ter ido lá, hoje não tem mais não.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.