“Embora em alguns momentos a vida lhe tenha sido um tanto quanto amarga, dona Inah perseverou com fé, talento e dignidade”. (Zé do Camarim)
Ignez Francisco da Silva tinha 13 anos e voz de gente grande quando foi convidada para cantar no Araras Clube, tradicional ponto de encontro da cidade em que nasceu. Todos conheciam a garota muitas vezes vencedora do concurso de calouros, realizado num auditório na praça principal e transmitido por alto-falantes. Pai negro e mãe branca, avô feito escravo e bisavó índia “capturada no mato para servir aos bacanas”, cedo conheceu o véu sombrio da segregação. “Eu era proibida de cantar por causa da minha cor. Só conseguia porque a família Zurita me ajudava.” De grande influência em Araras, o clã simpatizava com a menina talentosa e muitas vezes serviu de anteparo contra o preconceito. Ao chegar à porta do clube foi barrada. “Não tenho ordem de deixar ninguém entrar”, grunhiu o segurança, sem declarar o motivo. Não precisava explicar, ela sabia. “Se alguém perguntar pela cantora, manda me buscar na gafieira dos negros.” Mal chegara ao ponto de encontro do samba quando um carro parou e o motorista anunciou que iria levá-la de volta. Naquela noite, Ignez fez história ao se tornar a primeira negra a se apresentar no clube dos brancos. Pouco antes, Inácio Zurita dirimiu qualquer dúvida que o bem adestrado porteiro ainda tivesse: “Sou o dono e pedi pra ela vir cantar aqui”. A cantora desfiou sambas, boleros, rumbas e o que mais a orquestra tocou. E a fina flor da sociedade ararense se curvou diante dela. O nome artístico foi seu modo de homenagear a bisavó. A essa altura, a menina que desde os 9 anos acompanhava o pai trompetista pelos bailes na roça era uma jovem cuja couraça se fortalecia cada vez que a nuvem da hostilidade se espessava. “Meu pai era negro. Ninguém falava nada, mas a gente percebia o preconceito. Quando começavam as provocações, não dava pelota. Mas doía.” Talvez as atribulações tenham contribuído para forjar sua determinação. “Sempre pensei em cantar, em ser gente.” Talvez tenha nascido sob o signo do arrojo. Falar tranquilo, Dona Inah relembra o episódio em que conheceu uma mulher a quem atribui sua força interior. “Quando minha mãe estava internada em São Paulo encontrava essa mulher sempre no elevador do hospital. Ela ficava me olhando, uma negra bonita. Um dia perguntei para o ascensorista, ‘em que andar ela vai?’ ‘Quem? A senhora entrou sozinha no elevador’.” Inah dormia no quarto da mãe quando a mulher se aproximou e cobriu os pés da paciente. “Assim que saiu fui atrás, mas não tinha ninguém no corredor. Minha mãe morreu naquela noite.” Na casa de uma colega espírita, reconheceu num quadro a jovem do hospital. “Foi muito forte.” A imagem era de Anastácia, cultuada como defensora dos escravos. “Ela me protege muito.” Pai negro, avô feito escravo, bisavó índia, ela cedo conheceu o pesado véu da segregação Por volta de 17 anos, Ignez era Emilinha Borba, Marlene, Dolores Duran, Isaurinha Garcia, Dircinha Batista. Sem rádio em casa, pegava carona nas ondas sonoras do aparelho do vizinho. “Eu copiava as letras.” Admiradora das cantoras da era de ouro da radiodifusão, fazia dela aquelas vozes. Até que Orlando Silva lhe deu um conselho definitivo: “Por que você não canta como você mesma?” Foi como ela mesma, voz grave a trair um laivo de dor, cuja emissão de notas longas angaria elogios de admiradores como o compositor Eduardo Gudin, que Dona Inah construiu uma carreira de 64 anos na noite paulistana. Ao deixar Araras, separada do homem com quem se casou aos 16 anos e teve sete filhos, “um crente que empatou minha vida, não me deixava cantar”, veio para São Paulo disposta a trabalhar no Avenida Danças, esquina da Rio Branco com Rua Aurora. No táxi-dancing, cavalheiros pagavam para rodopiar com as garotas da casa ao som de duas orquestras. “Cheguei lá de noite, barriga roncando de fome. Fiquei na porta até que o maestro Clovis Eli perguntou o que eu fazia ali. ‘O senhor precisa de uma cantora?’” A resposta veio rápida e ríspida: “Preciso de cantora, não de cozinheira”. Sem alterar o tom, a candidata a crooner agradeceu e rebateu com fina ironia: “O senhor é um homem muito educado, espero que nunca lhe falte uma cozinheira”. Quando Tobias Troisi, o segundo maestro, deparou com a moça em lágrimas, convidou-a a cantar. “Não tive tempo de ensaiar. Ele me apresentou e pediu ao público que respeitasse a novata. Mandei ver. A plateia parou de dançar e me aplaudiu, saí do palco e chorei.” “Nunca tive medo de música”, afiança a artista que completa 79 anos em maio, cuja estatura pequenina não deve ser confundida com fragilidade. O talante vem de longe. Aos 15 anos, só não foi para o Rio de Janeiro a convite de Luiz Gonzaga porque o pai não deixou. A voz privilegiada e a capacidade de ler partituras não a pouparam do trabalho braçal. Quando não estava em emprego fixo como doméstica, batia nas casas e se oferecia para limpar jardim, lavar roupa, cozinhar. “Era o que tinha, estudei só até o ginásio.” Aposentou-se como faxineira de banheiros na Prefeitura de São Caetano. Tantos foram os percalços, entre eles a perda de gravações consumidas num incêndio na década de 1950 na TV Record, que se passaram 50 anos até o primeiro disco, Divino Samba Meu (2004). A “estreia” rendeu o Prêmio Tim na categoria Revelação. Dona Inah tinha 70 anos quando foi apresentada ao grande público. “Saí de lá meio boba de alegria.” Em 2008 lançou Olha Quem Chega, só com músicas de Gudin. E em 2013, Fonte de Emoção. Dos tempos de rádio e gafieiras, guarda afeição pelos boleros e chá-chá-chás. Mas é no samba que sua alma se acomoda. “Minha vida não existiria sem ele.” Entre as reminiscências, um samba-canção inédito que gostaria de gravar. “A dona dele me ensinou numa madrugada. Era maravilhosa, meiga, sofrida.” A dama melancólica, morta num acidente dias depois de compartilhar a composição, era Maysa.
zé do camarim emocionante a reportagem sobre a querida amiga D. Inah Um exemplo de vida , de dignidade, de perseverança.Ainda existe muito mais detalhes sobre a sua caminhada em busca deste reconhecimento , sugiro uma continuidade da matéria pelo clube do choro,e também uma homenagem à nossa dama do samba paulistano Oswaldo