“O povo que não ama e não
preserva suas formas de expressão
mais autênticas jamais será um povo livre”
Plínio Marcos
Sexta pra sábado, um pouquinho depois da meia—noite, Zinho, aquele do cavaquinho, filho do grande Lili, depois de umas e outras, mais umas que outras, propriamente dito, se desguia à francesa pra casa e caminhando na maciota, devagar e sempre, diz baixinho no próprio ouvido, “Graaaxa!”. Já perto de casa fica invocado com o silêncio surdo não muito comum do pedaço. De um minuto pra outro bate um vento prálá de estranho, entre brisa e ventania, quase um noroeste e, nesse exato momento, como que por encanto, quebrando o silêncio, a cachorrada explode entre uivos e latidos. Zinho conta que um forte arrepio atravessou-lhe a espinha, pois não estava entendo nada, tudo muito estranho, não conseguia dar mais um passo. Ficou paradinho da silva por alguns segundos como um dois de paus e para seu maior espanto, junto com os latidos, se forma um pequeno redemoinho anti-horário levantando um bocado de poeira e no meio da inesperada ventania surge uma estranha criatura. Zinho, com cara de zagueiro que fez gol contra, viu a tal criatura passar às gargalhadas, capuz vermelho, cachimbo aceso, pulando pelos ares numa perna só como se tivesse as duas, e, num ziguezague frenético desapareceu no bambuzal do morro do Marapé. Zinho até que duvidou, afinal de contas, água benta, às vezes, faz o vivente ver coisas que até Deus duvida e, numa graxa só, pois estava meio truaca, meio trança pés, pensou lá cá com seus botões: “Mano, não é batalha de confete e nem domingo de carnaval, fantasia não pode ser”. Desconfiou.
Dia seguinte, logo cedinho, as suspeitas do Zinho se confirmaram. A feijoada que a Cleide fez com carinho pro Peixe, irmão do Chico Palha, sem aparente razão, queimou, queimando também o arroz. O doce salgou e o salgado adoçou. Chiadeira geral das donas de casa. A roupa do varal e do quarador estava torcida, outras com nós impossíveis de desatar. Quem não gostou nem um pouco da brincadeira foi o compadre Delegado Chico Palha, que, depois de quase seis meses temperando e curtindo o cambuci na cachaça de primeira, lá do morro, viu tudo perdido pelo chão da cozinha. O endiabrado entornou a delícia das delícias, verdadeiro maná dos Deuses, pelo quintal à fora. Uma pena. Dor no coração. O feijão, a couve, o arroz, queimados, tudo bem, mas a cachaça, não né? Diante disso tudo, Zinho confirmou então suas suspeitas, não tinha mais duvida, a criatura que passou por ele era o próprio. O Saci. É isso mesmo meu caro leitor, o danado, o moleque, o capetinha, o endiabrado Saci Pererê. Bem sabe o amigo que a criatura é dada a travessuras e molecagens. Conforme Avó Mariana ensinou, a criatura nasce no broto do bambu onde fica por sete anos, depois, livre, vive por setenta e sete anos infernizando a vida das donas de casa e queima feijão, troca o sal pelo açúcar, dá sumiço em tudo, torce e retorce as roupas que ficam nos varais e no quarador. Torce e retorce a crina e o rabo do cavalo em nós quase impossíveis de serem desatados além de aporrinhar a vida dos cachorros e gatos. Dizia ainda avó que, naqueles tempos, era costume ter um Saci Pererê preso na garrafa, pois, feiticeiros, profundos conhecedores dos segredos das ervas e das florestas ensinavam e ajudavam a curar doenças.
Para alegria e surpresa dos moradores do bairro, muita gente já garantiu ter visto novamente a criatura, principalmente nos finais de tarde nos quintais, onde as donas de casa secam suas roupas, prato cheio para as traquinagens dos travessos. Além do reaparecimento do Saci, alguns moradores confirmaram também o retorno de sanhaços, gaturamas, tiés-sangue e até de cardeais que pareciam estar desaparecidos do bairro.
Todos sabem que, alí, no fundão do Marapé, os moradores, na sua grande maioria, ainda residem em casas com quintais ou em prédios pequenos. Não se sabe até quando. No morro do Marapé, ainda se mantém um grande bambuzal, que é o criadouro de Sacis e é o responsável também pelo agradável retorno de passarinhos tidos como desaparecidos do bairro. Poucas famílias ainda moram no morro. Pois bem, Seu Agostinho, um dos mais antigos moradores do morro e profundo conhecedor dos seus segredos, confirma ter visto, não só Saci, como jura de pés juntos ter visto outra criatura das matas. Conta que vinha chegando em casa bem no final da tarde, noite de lua nova bem escura, um breu só, quando ouviu uma gritaria e grunhidos dos porcos sem razão aparente e do nada surgiu uma criatura envolta em uma bola de fogo, um fogaréu. Seu Agostinho garante que era o Caipora. Eu, cá no meu canto, não acredito nem desacredito, e, se Seu Agostinho falou tá falado e ponto final.
Por conta disso, pedimos ao amigo que, se, por um acaso, quando anoitecer, encontrar pela frente a tão ardilosa e travessa criatura não tente prender e nem olhar diretamente para seus olhos. É muito perigoso, já dizia minha avó Mariana. Faça apenas o sinal da cruz e siga em paz. Lembre-se ele é quem guarda os segredos das ervas, das curas e da sabedoria dos tempos.
No final dos anos cinquenta, a Vó Mariana, que mantinha um Saci Pererê na garrafa, partiu sem mais aquela e a garrafa quebrou e com ela desapareceu também o nosso Saci. A mãe falou que Deus chamou a vó Mariana. Fiquei um bom tempo chateado com Deus, mas como não andava tão bem na escola, logo fiz as pazes, precisava passar de ano.
Por isso e muito mais meu caro amigo leitor guarde sua garrafa com carinho e não deixe ela se quebrar, nunca. Se possível.