Entrevista com o compositor Elton Medeiros convidado do Clube do Choro de Santos em 24 de abril de 2009, na Praça Mauá, no centro de Santos.
MARCELLO:…eu não vou ler nada, só para não esquecer o que eu tenho para te perguntar…
ELTON MEDEIROS: Pode ler, pode fazer…
MARCELLO: Não, eu não gosto de ler…
ELTON MEDEIROS: Pode fazer cambalhota e antes de mais nada vou dizer que eu tenho um gravador parecido com esse.
MARCELLO: É isso aí…(risos)
Três perguntas rápidas, de bate-pronto:
CLUBE DO CORAÇÃO: Olaria.
ESCOLA DE SAMBA: Escola de Samba, minha? É Unidos de Lucas, uma escola de samba que está agora no terceiro grupo.
FORMAÇÃO MUSICAL: Formação musical? Eu posso dizer a minha vida musical. Eu comecei em banda infantil, toquei sax horn barítono na Orquestra Juvenil de Estudantes, fui fundador de Escola de Samba, toquei tamborim em bloco de rua, surdo, pandeiro, uma porção de coisas. E toquei em gafieira trombone, gafieira, é essa minha formação.
MARCELLO: E o teu instrumento predileto é a caixinha de fósforos ainda?
ELTON MEDEIROS: Não…! É tanto quanto o trombone, eu não pego mais em trombone, não pego mais em sax horn, não pego em mais nada. Eu tenho é que pegar vento para sobreviver…(risos).
MARCELLO: Elton, você além de grande compositor, você sempre…você ainda é um grande pesquisador, um grande estudioso dessa africanidade brasileira, ou seja, a presença do negro na cultura brasileira. Diga pra gente a importância disso, na sua opinião.
ELTON MEDEIROS: Bom, eu acho que a cultura africana ela é a grande base, não é, da cultura musical brasileira, a cultura rítmica e também melódica. Nós bebemos dessa fonte que é a musicalidade africana para fazer o samba, o samba que é de origem “banto”, não é, está aí o samba sobrevivendo até hoje graças a esse…a essa produção implantada no Brasil, os batuques, as curimas e outras…ao jongo e outras manifestações culturais africanas. Graças a isso nós temos uma cultura musical brasileira muito forte, que por mais que tentem destruí-la, por mais que tentem alterá-la, não conseguem, e as marcas da influência africana na nossa cultura ela permanece e cada vez mais se acentua, porque as novas gerações procuram beber nessa grande fonte de informação étnica.
MARCELLO: Perfeito…! E na tua concepção, hoje, ou melhor, há algum tempo, como você vê a produção dos sambas-enredo. Você não acha que eles deixaram de ser, especificamente, sambas-enredo para se transformarem em sambas de empolgação? E você também não acha que a qualidade dos motes das composições caíram bastante?
ELTON MEDEIROS: Bom…samba-enredo…eu não quero me colocar na posição daquele que pode ser chamado
de saudosista, mas eu acabo me colocando…
MARCELLO: Caindo né…?
ELTON MEDEIROS: Caindo nessa posição, não é! Porque, realmente, o samba a partir do momento que perde a síncope, ele tem tudo pra se transformar em marcha. Ele se aproxima muito mais da marcha do que do samba.
MARCELLO: Até pela velocidade com que se está tocando isso também…!
ELTON MEDEIROS: Não só a rapidez como a perda da síncope, que é o que caracteriza o samba. Então se o samba ficar alterado, se aproximando muito mais da marcha do que do seu…do seu aspecto original, eu tenho que ser a favor do samba de…a partir do…a partir do Estácio, porque o Estácio foi o grande transformador, porque antes o samba era maxixado. A turma do Estácio…ainda não deram o devido valor histórico ao que a turma do Estácio fez, não é…!
MARCELLO: Você acha que tem dívida ainda com eles…?
ELTON MEDEIROS: Há uma dívida com eles! As pessoas precisam discutir mais a consciência musical, as idéias , a divulgação tão maciça que o pessoal do Estácio…tão feroz que a turma do Estácio fez…!
MARCELLO: Feroz e competente ao mesmo tempo…!
ELTON MEDEIROS: Claro…! Só tinha gente competente…Nilton Bastos, Brancura, Bide, Ismael, essa turma toda fez muita coisa pela cultura brasileira através do samba.
MARCELLO: E você além de compositor de sambas, você também é compositor de choros…!
ELTON MEDEIROS: Eu já compus choros, valsas, tudo…!
MARCELLO: Mas o que pintou primeiro na tua vida: o choro e o samba ou o samba e o choro ou isso aconteceu independentemente de ordem…!
ELTON MEDEIROS: Aí é uma história…é uma questão que merece um pouco de história da minha vida. Eu sou filho de ranchista, meu pai era ranchista, minha avó do lado da minha mãe, era sanfoneira. Eu não conheci minha avó sanfoneira, como não conheci meu avô por parte de meu pai, mas as coisas que me foram transmitidas através de meus pais, ficaram. Meu pai era ranchista, então, eu morei no bairro, nasci no bairro da Glória, morei no bairro da Glória onde, na década de 30, existiam muitos ranchos carnavalescos. Então a marcha-rancho, ela vivia ali no bairro, ela era uma constante no bairro, como também eu era…sou do tempo das serenatas e das serestas. Você deve saber…serenata é a música que é feita…era feita na rua, como o próprio está dizendo, serenata, música feita no sereno e seresta é a música com característica de serenata mas cantada dentro de casa, cantada e tocada dentro de casa, música de seresta. Agora, serenata, é aquilo que é feito na rua, caminhando na rua, parando diante de uma janela na rua, debaixo do sereno, não é. E tudo isso eu vi…eu vi muitas declarações de amor através de canções, na minha infância. Hoje se o cidadão for cantar à meia-noite olhando para uma janela, vai tomar, no mínimo, um balde de água na cabeça e a polícia vem e vai dizer que é atentado ao silêncio da noite. Então, hoje não existe serenata, não existe seresta, existem sim, barulhos estranhos na nossa cabeça, acintosos, não é, violando a lei e ninguém faz nada. Mas se você for cantar, de madrugada, diante de uma janela, é capaz de aparecer um policial e te levar. Quer dizer, se você cantar, você vai preso; mas se você fizer barulho, não vai preso…risos…são coisas…!
MARCELLO: Inverteram-se as coisas…!
ELTON MEDEIROS: Que não tem explicação…! Então, vivemos um outro momento. Talvez um momento menos lúdico, menos romântico e nós temos que pagar por isso.
MARCELLO: Então essa coisa do choro e do samba na tua vida, depois das serenatas…
ELTON MEDEIROS:…você vê…as serenatas, choro…mas é que os músicos que saiam dos ranchos eles se reuniam pra tocar choro…
MARCELLO: Já faziam choro também…!
ELTON MEDEIROS: Já, naquela época, já, claro que sim…! A época de quem: época do nosso Ernesto Nazaré…
MARCELLO:…já vinham dos choros carnavalescos…!
ELTON MEDEIROS: Não, choro mesmo, choro tocado em saraus…existiam os saraus, não é, então…a Chiquinha (Gonzaga) já fazia sarau em casa, outras pessoas imitavam o comportamento da Chiquinha e do Ernesto Nazaré. O Ernesto Nazaré era tio-avô da…daquela atriz que fazia…trabalhava no Sítio do Pica-pau Amarelo…
HERLINHA:…Zilka Salaberry…?
ELTON MEDEIROS: Zilka Salaberry, que era irmã da Mayer…como é…da outra que era casada com o Rodolfo Mayer, a Lourdes Mayer. Ela era irmã da Lourdes Mayer. O Ernesto Nazareth era tio-avô delas. Então você vê que essa geração acabou, mas ficaram marcas culturais dessa época. Eu sou um apaixonado por aquela época…
MARCELLO: Você foi um privilegiado…
ELTON MEDEIROS: Eu vi muito sarau na minha casa, muito sarau na casa dos vizinhos, existiam os saraus dos…da plebe e os saraus da casa…porque aqueles…hoje existem os casarões que são hotéis, alguns até de alta rotatividade, mas aquilo eram casas de pessoas abastadas. Eles davam saraus na da casa deles, a plebe ignara ficava na calçada olhando lá pra dentro e eles tocando piano, eram os pianeiros…
MARCELLO: Pianeiros, exatamente…
ELTON MEDEIROS: E aquelas mulheres com a mão assim no piano, cantando de vestido longo…um grande pianista que faleceu recentemente, Aloisio de Alencar Pinto, era um pianeiro…eu me lembrei do Aloisio, mas existiam outros…o Catulo era um frequentador desses saraus…Catulo da Paixão Cearense…e eu era pequeno, eu via essa gente lá dentro do salão e eu no colo da minha mãe, na calçada, olhando lá pra dentro…ficava aquela plebe toda olhando, que eu morava numa casa de vila, aquelas casas que hoje são esses hotéis, hoje são casas de…ginástica, essa coisa toda…
MARCELLO: Academias…?
ELTON MEDEIROS: Academias…! Eram casas de pessoas abastadas, vieram passando de mão em mão, hoje são aqueles salões imensos cheios de esteiras, de aparelhos para ginástica. Mas eu vi aquelas casas como casas de recepções de seresteiros…o cara tocando, aqueles…o próprio Luis Americano, o próprio Pixinguinha eram convidados dessas pessoas pra tocar nesses saraus e muitos compositores, muitos músicos desses que tocam flauta, tocavam bombardino etc., eram músicos que constituíam a banda dos ranchos carnavalescos. Quando a gente fazia aniversário eles adentravam à nossa casa e tocavam até de manhã por nada, não cobravam. É só porque eram vizinhos, você dizia…mas eu tô duro, não posso pagar…eles entravam, tocavam, faziam vaquinha e botavam
bebida lá dentro. A vizinhança vinha…uma mulher com pudim de laranja, outra com pudim de côco, as pessoas vinham com licor porque sabiam que você fazia aniversário, virava festa sem você querer e aquilo ia até de manhã. Então eu assisti a tudo isso, eu sou produto dessa coisa, sou resultado dessa coisa. Depois veio Escola de Samba, Bloco Carnavalesco, eu me integrando a isso tudo, então eu sou o resultado, sou um dos últimos dos Moicanos dessa era.
MARCELLO: Você gravou com Nelson Sargento e o Conjunto Galo Preto um CD que eu acho fantástico. Você também é desse tipo de sambista que gosta de ser acompanhado por conjuntos de choro?
ELTON MEDEIROS: Eu gosto de ser acompanhado por bons músicos. Tem músico de sinfônica que não tem nenhum preconceito, que toca tudo, quando ele chega na roda com um violino e dá um belo recado, eu gosto de ser acompanhado por ele. Não adianta o camarada dizer que é músico popular, você tá cantando em tom maior e ele tá te acompanhando em tom menor, quer dizer, é um tal de bola na trave, não pode cantar, não pode tocar, não pode nada. Agora, o músico ele pode ser “erudito” ou não, ele sendo bom músico, você tem o maior prazer em ser acompanhado por ele. O próprio Villa-Lobos foi um grande brasileiro que acabou com essa história de música erudita e música popular. A gente cantava tudo com ele, ele usava temas populares pra fazer as músicas dele, música de roda, ele usava tudo isso. Então, quem cantou naqueles corais dele, como eu cantei, aprendi a não ter preconceito, nem com o músico clássico, vamos dizer, nem com o músico clássico que tocava com ele, aprendia a ouvir e tocar a música popular.
A partir daqui, nosso vice-presidente Luiz Antonio Pires, assume o comando da entrevista.
LUIZ PIRES: Elton, a atual sistemática de arrecadação de direitos autorais, você acha que atende aos anseios dos compositores?
ELTON MEDEIROS: Olha, não deve atender aos anseios dos compositores não, mas eu vou dizer uma coisa sinteticamente: mal com o ECAD, pior sem o ECAD!
LUIZ PIRES: Você pode destacar, no teu ponto de vista, a importância dos Clubes de Choro que agora começam a preponderar no nosso País…!
ELTON MEDEIROS: É, agora não sei se prepondera! O do Rio acabou, de muitas cidades acabaram e outros estão surgindo. Hoje me parece que o Clube do Choro mais antigo é o de Brasília com o Reco. Agora estão surgindo outros, não é! E o do Rio acabou, o de Niterói…São Paulo acabou…bom, eu vou parar por aqui pois senão vou falar coisas que não quero falar, entendeu…!
LUIZ PIRES: E Elton, pra encerrar, arrematando o assunto a respeito do negro na cultura brasileira…
ELTON MEDEIROS:...eu, inclusive, sou bisneto de africanos, da parte do meu pai, minha mãe não era negra, mas meu pai era negro; meu pai não era negro, meu pai era azul, entendeu…! Mas um crioulo daqueles que andava de terno…terno mesmo…calça, paletó e colete…gravata…entendeu!…cheiroso, um camarada que não saia da Perfumaria Anita, que ficava na Rua Uruguaiana e era um cara namorador, minha mãe sofreu muito na mão dele e sem preconceito, namorou mulheres de todos os matizes, entendeu…! E um grande dançarino, meu pai era um grande dançarino…mas minha mãe não dançava muito bem e era filha de sanfoneira. Então, a…eu tô desconcentrado agora…
LUIZ PIRES: Você estava falando como dançarino, seu pai…
ELTON MEDEIROS: É, dançarino… foi dançarino… dançou… ele tinha até medalha de dançar com patins, aquela influência de Fred Astaire e até de dançarinos que surgiram antes do Fred Astaire dançando salão, não é, porque nos bailes de clubes de rancho, haviam torneios onde o cidadão tinha que dançar entre as cadeiras. Se ele esbarrasse na cadeira, ele era eliminado e ia até o último. O que sobrasse daquele grupo é que ganhava medalha até de ouro ou de vermel, aquela coisa toda. Meu tinha medalhas de dançar de patins no meio das cadeiras. Então ele era um dançarino. Lá em casa todo mundo, a dança “Chic to Chic”, todo mundo dançava muito bem, porque meu pai ensinava a dançar, todo mundo tinha que dançar. Ele vinha andando…em casa…estava tocando uma música ele pegava minha irmã e saia dançando. Isso de dia. E aí minha mãe dizia assim: “vocês parecem vagabundos, ficam dançando durante o dia”…ele não estava ligando, ele estava ali dançando, ensinava as filhas a dançar.
LUIZ PIRES: É isso, Elton, a gente agradece então…!
MARCELLO: Elton, agora eu vou te deixar numa sinuca de bico. Você é um cara autêntico pra caramba, a gente já percebeu isso, então responda pra mim, rapidinho e sem pensar muito: qual é o maior sambista brasileiro!
ELTON MEDEIROS: Não sei…! (risos)
MARCELLO: Agora você fugiu do pau…
ELTON MEDEIROS: Não, não sei quem é o maior sambista brasileiro. O maior sambista brasileiro não sei quem é.
MARCELLO: Pode ser o Elton Medeiros?
ELTON MEDEIROS: Não, não é, esse não é…esse eu garanto que não é…(risos)