“Longe de casa eu choro e não quero nada, que fora do chão ninguém quer e não pode nada.”
(Paulo Vanzolini)
Certa vez ouvi a seguinte frase de um pigmeu dos fundões da África, depois de saber sobre as pessoas que estavam dentro de um avião. “Povo triste que precisa sair de sua terra pra ser feliz em outra terra”.
Fico eu cá por estas bandas trocando e mudando de ideias com o amigo “profeta” que mora eternamente nas calçadas, às vezes geladas como o frio glacial e outras vezes quente como o mais quente dos dias do calor senegalesco. Não sei, muitas vezes, do que ele está falando, sei, porém que é preciso ouvir suas histórias. Palavras contadas, das maldades e das bondades humanas. Vejo o “profeta” nas calçadas dividindo a quase nenhuma comida do dia a dia com outros moradores das ruas sem eira e nem beira. Não sei o nome dele, dizem alguns que é Israel. Fico com a palavra dele pra mim. “Não dê atenção a essa gente, eles não dão paz a tua alma e nada dão de acréscimo pro teu coração.”
O “profeta” Israel tem paz no olhar já gaseado, fala manso em sussurros, como um sopro e tem sempre um sorriso breve no rosto castigado pela triste vida de tempos duros.
Escuto por vezes também, por estes lados do meu quintal, Seu Hernandez, espanhol, velho anarquista ateu que lutou na guerra civil espanhola, combatendo o ditador Franco em tempos de fascismo. Velho sapateiro que insiste no conserto de raros sapatos de couro de homens de costumes antigos que se negam ao moderno.
O velho espanhol me diz, meio ressabiado, a boca pequena, que anda com medo do ódio e dos rancores que caminham pelas calçadas brutalizando os pensamentos. Profundo conhecedor das atrocidades da guerra civil espanhola, Hernandez lamenta que esse ódio, que se espalha como praga, apague o que sempre foi, para ele, o melhor do povo brasileiro, a alegria e a solidariedade que ele conheceu quando chegou a Santos e foi trabalhar no cais onde conviveu por longos anos com todas as lutas. Ali, diz ele, “na dura labuta, todos os trabalhadores lutavam pelos mesmos direitos e por justiça, no dia a dia e nas greves por melhores condições de trabalho”. Pai de família sem trabalho podia bater na parede que lá encontrava trabalho e solidariedade.
“E eu saio pra rua assobiando comprido um samba que Silvio Caldas cantasse” – (Paulo Vanzolini)
Na calçada da minha rua tem um armarinho, lojinha de aviamentos, onde se reúnem alguns senhores na porta para falar de futebol, do passado, claro. Falam muito do Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe e falam muito do Zito, eterno capitão, do PPP, Pagão, Pelé e Pepe e ainda da elegância e da classe do Mauro Ramos de Oliveira e do futebol eficiente do não menos elegante Calvet.
Não sabem do futebol dito moderno, não acompanham afinal quem pode jogar mais do que aqueles. Falam de jogos de tantos anos passados como se tivesse acontecido ontem
Não querem consertar o mundo, pois impossível, seria melhor o mundo sem o homem, que destruído já está.
No chão que adoro, na esquina, tem a feira, dita livre, de quinta feira. Encontro amigos, velhos amigos, alguns apenas da feira. Dou de cara, às vezes, com o finório malandro e pensador Didi Canela Grossa que vai logo dizendo: “O que vem de lá que tanto pula!?” “Salve a Bahia! Salve o Senhor do Bonfim! Saravá a sua banda e salve o galo preto de bico amarelo!”
Estivador de todo sempre e de todos os tempos, o manjura tem sempre uma conversa pra boi dormir pra contar.
É na zona do agrião que fico batendo pernas, trocando pés pra cima e pra baixo. Entro nas vielas e nos becos e mesmo que não ouça mais uma flauta chorar prata, trago no peito e na memória as flautas e bandolins que ouvi nas esquinas e nos quintais, afinal longe de casa eu choro e não quero nada.
“Mas é pranto e choro tanto, quem me dera hoje mesmo eu voltasse pro chão que eu adoro, pois longe de casa eu choro e não quero nada.” – (Paulo Vanzolini)
(Renê Rivaldo Ruas é cronista, poeta, jornalista e escritor, nascido em Santos, onde há mais de 40 anos exerce seus ofícios literários em dupla jornada, atuando também como músico da Roda de Samba do Ouro Verde, na qual atua há trinta anos. Entre crônicas e artigos em revistas e sites, lançou o livro “Cuíca no Velório– Samba de Arrelia e Arrabaldes”, pela Editora Realejo (2010), e prepara para este ano o livro “Poleiro de Pato é terreiro – Firulas, Parangolés e Coisa e Loisa”, com crônicas e textos inéditos reunidos. É Critico de Música do Clube do Choro de Santos).