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DEFUNTO MALCRIADO

defunto-jpg“Tudo é real, por que tudo é inventado.”
(Guimarães Rosa)

Otacílio, sujeito grinfo, ficava vermelho de raiva e muito puto quando algum desavisado, mequetrefe, o chamava pelo apelido. “Defunto Malcriado”. Invocado, pois vivia as turras com a vida, com o mundo, com a vizinhança e, principalmente, com os amigos de copo e balcão, partia pra porrada por nada. Sem papas na língua, deitava e rolava mesmo, pois que a “vias de fato” era a única linguagem do homem.
Sofrendo uma doença esquisita do caramba, Otacílio apagava geral, estrebuchava e se apresentava meio “morto”, meio “vivo”, permanecia nessa aparente morte por alguns longos minutos e “ressuscitava” lépido e faceiro e prosseguia na mesma conversa: – “Pelé e Coutinho era foda, mas o Pagão era mais foda ainda”.
Pagão, claro, seu eterno ídolo. E assim ia tocando a vida, morrendo aqui, ressuscitando ali.
A porra da “morte” do homem acontecia nos lugares e nas horas mais estranhas.       
Um belo sábado, depois do jogo do Alvinegro mais famoso do mundo, a cambada, já meio (ou toda) alta de tanta branquinha e feliz por mais um show dos “globe-trotters”, resolve dar uma esticada na Tia Ivone, no 275 da General Câmara pra troca de óleo geral.
Otacílio meio trança pés, atacou logo a Madalena, morena encorpada, duas horas de mulher pra cinco minutos de homem, mulher pra mais de metro.
Partiu pra cima da mulher e caiu dentro e no melhor da festa, passando a linguiça na farinheira, o mariola apagou, “morreu” novamente, agora em cima da Madalena. Gritaria e escândalo geral. Chama o Padre, chama a polícia, bombeiro, ambulância, o Babalorixá Fofinho de Ogum e o escambau. Uma pororoca na casa da Tia Ivone. Nunca se viu tanta gente nua em disparada correndo de um lado pro outro saindo dos quartos, pulando pela janela, neguinho com calcinha na cabeça, sutiã dependurado na orelha, uma avacalhação e a desmoralização do respeitado rendez-vous, conhecido também como puteiro.
Nessa onda toda, passados alguns minutos o nosso Lázaro, digo Otacílio, ressuscita e mais invocado ainda reclama da Madalena que se empirulitou, se desguiou, sumiu da zona e, ainda levou a carteira com a grana toda.
Entre mortos e feridos, Otacílio seguia a vida no seu dia a dia entre “falecimentos” e retorno a vida.
Num sábado de carnaval, pela manhã, a mulher do Otacílio que desfilava na ala das baianas da Escola e já aprontava a fantasia do camarada que desfilava na bateria batendo o surdo de primeira, dá com o nosso “Defunto Malcriado” mortinho da silva. Pronto, agora o homem foi de vez.
Tristeza geral, afinal estava tudo pronto para o desfile da escola. Corre daqui, corre dali, monta-se o velório com tudo que tem direito, discurso, muita caiana, salgadinhos, mais caiana, o caramba e o nosso “finado” Otacílio no caixão, coberto com a bandeira da escola, recebia as justas homenagens.
Chegou o diretor de bateria e mandou dar as 21 batidas do surdo em sinal de respeito. Na quinta batida, o Generoso que, tinha tomado uns pó de rato além da conta, desceu o cacete no surdo, “acordando” o nosso Otacílio que, meio barro, meio tijolo, levanta do caixão, “ressuscitando” mais uma vez, muito puto da vida, parte pra porrada e xinga a mãe de todo mundo. Seus “felas da puta”, vocês querem me matar. Vão enterrar a puta que os pariu. Chutou o pau da barraca, destruiu o caixão que nem estava pago, definitivamente o velório virou circo, só faltou a lona.
No dia seguinte, o nosso Otacílio, como se nada tivesse acontecido, vai a padaria e logo um desses espíritos de porco anuncia aos berros e aos quatro ventos.
- Bom dia ô Defunto Malcriado. Foi pau pra todo lado e uma luta pra segurar o homem.
Ficou Defunto Malcriado pra vida toda e depois de tantos “teste driver” pra morrer, morreu sem choro e nem vela “ressuscitando” pra frente de uma vez por todas.
(Renê Rivaldo Ruas é cronista, poeta, jornalista e escritor, nascido em Santos, onde há mais de 40 anos exerce seus ofícios literários em dupla jornada, atuando também como músico da Roda de Samba do Ouro Verde, na qual atua há trinta anos. Entre crônicas e artigos em revistas e sites, lançou o livro “Cuíca no Velório– Samba de Arrelia e Arrabaldes”, pela Editora Realejo (2010), e prepara para este ano o livro “Poleiro de Pato é terreiro – Firulas, Parangolés e Coisa e Loisa”, com crônicas e textos inéditos reunidos. É Critico de Música do Clube do Choro de Santos).


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