“Beijo, só discreto. Rosto colado pode, mas só dançando por dançar.”
Naquele pedaço quase ninguém sabia da vida da Iracema. Não se via a Iracema durante o dia, pois não saia de casa. Vivia num quartinho numa casa de cômodos bem ali no bambuzal na esquina da Rua 9 de julho com a Benedito Ernesto Guimarães, onde moravam também a Chumbinho com o avô, o Marrom, o seu Zezinho dono de tudo, além da minha avó Mariana que morava com o tio Diamantino. Iracema saia todas as noites lá por volta das dez da noite. Maquiagem pesada, salto alto e um vestido de babados que a minha mãe chama de vestido de godê. Pegava o bonde 37 lá no canal e seguia para a cidade.
Iracema aparentava cinquenta e poucos anos, sempre calada, pouco falava, no máximo, um bom dia, boa tarde e nada mais. Grande mistério.
Assim, meu irmão, não se precisava ir muito longe de casa para comprar alguma coisa, pois de manhã cedinho, bastava acordar ou chegar de madrugada e lá estava no portão o pão e o leite fresquinhos. Açougue, no Marapé, em cada esquina tinha um, feira, não precisava, bastava dar um pulinho no japonês da esquina, que, na sua horta, no quintal tinha de tudo: alface, couve, chicória, cebolinha, cenoura e, no final da tarde, com precisão britânica passava o padeiro. Todos os dias com o tão esperado pão quentinho, sonhos e a deliciosa rosquinha que ele queimava sempre. Leitor amigo desculpe a viagem na maionese e vamos voltar a nossa misteriosa Iracema.
As faladeiras de plantão comentavam, não somente à boca pequena, como também a boca escancarada, que a tal Iracema era puta da zona e que trabalhava para o Joca, lugar tenente do tio Diamantino que era um notório cafetão. Iracema era, pois, uma ameaça a moral e aos bons costumes. Iracema, porém, permanecia calada, tocando a vinda. A noite vestia os melhores panos e bonde 37.
Você sabe, mano velho, que o mundo gira e a Lusitana roda e numa dessas giradas, para espanto e surpresa de todos, Iracema aparece no centro do seu Domingos e desse dia em diante começa a frequentar o terreiro. A partir dessa data, a opinião sobre a Iracema mudou da água para o vinho.
Prestativa, ajudava todo mundo. Solidária, socorria a quem precisasse. Quando desabou o morro do Marapé, Iracema foi uma das primeiras a se apresentar para ajudar e trabalhou muito naquele que foi o pior desastre da história do bairro. A vida particular da Iracema permanecia misteriosa. Conseguia manter a solidão. Assim, amigo leitor, lá pelas dez, Iracema pegava o 37 no canal 1, sempre sentido cidade e, ninguém sabia a hora que voltava pra casa. Certo dia, triste dia, o bonde 37 não passou no canal 1, sumiu do Marapé e deve ter levado junto a Iracema, pois ali naquele pedaço nunca mais se viu a Iracema e nem se ouviu falar mais dela. Um bom tempo depois, muito tempo depois, num samba na casa do delegado Chico Palha, falando sobre a misteriosa Iracema, eis que o fagueiro e bailarino Nelsinho Boneca, malandro finório, que tinha mais tempo de boemia do que urubu de voo, que partiu antes do combinado e muito contrariado, logo esclareceu o mistério.
- Que é isso, mano velho, Iracema era a melhor bailarina do lendário Samba-Danças e minha parceira preferida. Picotei muito o cartão dela.
Mulher de muito respeito.
Iracema era mulher de fino trato, não tinha dono, pois era livre como rodopio no elegante salão do Samba-Danças.
Se o Nelsinho Boneca falou. Tá falado.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.