“Os marujos ficarão ao largo.
Nesta noite não vão descarregar
suas agonias nas bocas pesadas.”
(Plínio Marcos)
Realizado em 2009 e lançado em julho de 2010, o documentário “Dzi Croquettes” dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez, traça o histórico desse grupo capitaneado por Lennie Dale, que fez história nas noites do Rio de Janeiro e São Paulo, além das turnês pela Europa. Esses atores bailarinos que foram um símbolo da contracultura, que confrontaram o regime militar então vigente no país com ironia e inteligência. Revolucionaram os palcos brasileiros, com suas figuras exóticas de homens barbados e pernas cabeludas, num contraste com suas vestimentas e figurinos femininos e seus sapatos de saltos altos. Tornaram-se um mito na cena teatral brasileira e também nas noites de Paris.
Mas o que pouca gente sabe é que esse grupo teatral teve sua estréia na noite santista, mais especificamente na Boite “Nigth and Day”, que funcionava na Rua João Otávio. Dirigido por Carlos Gil e contando com a participação de todo o elenco que se notabilizou tempos depois na noite carioca como “Dzi Croquettes”, aqui, na boca santista o grupo chamava-se “Les Girls”. Durante meses foram sucesso na noite santista, e os mais antigos, assim como eu, que freqüentavam a boemia, tiveram a oportunidade de assistir no nascedouro, uma criação artística de muita irreverência, beleza estética e de muito talento por parte dos integrantes do grupo. Este pequeno detalhe talvez seja a grande falha do documentário de Tatiana Issa, pois este inicio do grupo sequer é mencionado.
A vida noturna da boca santista teve seu período áureo nas décadas de 50 e 60. A partir dos anos 70 começa seu declínio em função de vários fatores, entre eles, o aparecimento da AIDS, e o encurtamento do tempo dos navios nas operações de carga e descarga no porto. Casas como o “El Morocco” apresentavam grandes shows nacionais e internacionais. Pelo palco dessa boate e de outras, desfilaram Ângela Maria, Cauby Peixoto, Orlando Silva, Carlos Galhardo entre outros artistas de prestígio da época. Alem deles assisti a grandes violonistas
espanhóis como Paco de Sevilha alem das grandes apresentações da Caribe Steel Band.
Alem das casas noturnas antes citadas, haviam dezenas delas espalhadas pelas ruas General Câmara, João Otávio, Eduardo Ferreira e Travessa Dona Adelina, e quem fazia o roteiro dos prostibulos, teria que chegar até a Praça Tereza Cristina, que ficava na confluência das ruas General Câmara e Constituição. O que resta desta praça, é a marca da indiferença de governantes, para com a manutenção de nossos históricos logradouros. As casas mais badaladas eram o Skandinavian, a Star Dust, American Star Bar, ABC House, Casablanca e Flamingo entre outras. Posteriormente vieram outras casas, entre as quais, o The Fugitive.
Fora da área de maior concentração de bares e cabarés, outras casas noturnas de prestigio funcionavam a todo vapor. Na Rua Xavier da Silveira, ao lado do prédio da Alfândega funcionavam a Broadway e a El Dorado, bem de frente para os armazéns cinco e seis do cais. Ainda na Xavier da Silveira existia o famoso Bar dos Navegantes, um misto de cabaré e buteco, onde aconteciam grandes brigas. Por sinal eu estava lá, na madrugada em que o bar foi totalmente destruído numa briga entre militares da Aeronáutica e frequentadores. Nunca mais abriu.
A boca tinha seus valentes, seus heróis, sobre os quais correm muitas estórias, algumas das quais cheirando a lenda. Desses personagens o de maior destaque é sem dúvida o Nego Orlando, figura lendária da noite santista. Contam-se sobre ele várias estórias, entre elas, uma em que teria morto um cavalo da PM com um soco. Comecei a freqüentar essa zona boemia ainda na adolescência, e fui testemunha ocular da primeira montagem de “Les Girls. Garoto em busca de emoções e aprendizado me tornei amigo de Orlando Veríssimo, o Nego Orlando, então o “delegado” do Samba Danças. Respeitado, entre as lendas que acompanham sua história é a de uma célebre briga com Roberto Assef, que teria começado na pista do Samba Danças, e terminado no meio da Rua General Câmara. Entre esses dois espaços havia uma enorme escadaria.
Tanto Assef quanto Orlando sempre negaram o fato, pois, na verdade, eram grandes amigos. Nego Orlando estava preso na Ilha Anchieta quando estourou uma revolta dos presos, que tomaram a ilha e fizeram reféns todos os funcionários que lá residiam. Os cabeças da revolta queriam matar todos eles e quem se opôs a isso foi o Nego Orlando, que com sua estatura e força salvou a vida desses funcionários e suas famílias. Em função disso, após a policia ter controlado a revolta, recebeu o merecido indulto. Dizem que seu padrinho era o Deputado Federal Antonio Feliciano, mas a bem da verdade, nunca os vi juntos.
Orlando foi meu amigo até o final de seus dias. Depois que a boca entrou em decadência, com o fechamento da maioria das casas noturnas, inclusive o Samba Danças, ele residia no bairro do Gonzaga e nos encontrávamos todas as noites em frente ao antigo Café Atlântico.
Certa vez o vi na Praça Independência quase correndo em direção de sua casa. Quando interpelei o porquê da pressa, ele simplesmente me respondeu: “Saí nu, esqueci o revólver”. Assim era o Nego Orlando, que não vacilava em termos de segurança, mas que era amigo de seus amigos, com toda lealdade possível. Como ele conheci outros personagens da boemia santista, entre eles o Nego Velácio, estivador que morava no Marapé. Nos finais de tarde quase sempre nos encontrávamos na loja de discos do cantor Mario Gil, que hoje reside em Portugal. A noite contava com seus valentões como Toninho Navalhada. Estivador de mau gênio, que residia ali na Praça Padre Champagnat. Numa disputa de ponto de estiva acabou se desentendendo com Simeão e na troca de tiros acabou levando a pior.
Outro estivador de maus bofes era o Peixinho. Certa vez no reboque do bonde 19, um cidadão queria fumar e solicitou a ele que fornecesse o fogo. Ele não teve dúvidas. Sacou o 38 e atirou no cara. Era freqüentador de um dos bares da Xavier da Silveira, onde mantinha conta. Ocorre que o bar foi vendido para um lusitano recém-chegado de Portugal, que não conhecia o Peixinho e muito menos era chegado em pendurar contas. Quando Peixinho lhe solicitou uma cerveja e mandou pendurar, o luso se negou a servir. Ele não teve dúvidas, saiu do bar em direção de sua casa, e alguém avisou o lusitano que ele ia voltar armado para matá-lo. O português se preparou. Deixou uma arma pronta embaixo do balcão e quando o Peixinho entrou no bar ele nem pestanejou: atirou e matou o Peixinho, com isso, mais um valentão da boca teve seu trágico fim.
Alem dos cabarés, existiam os salões de baile que funcionavam na Humanitária, no SMTC Clube, no Som de Cristal, no Vassourinhas ali na Rua São Bento, e no foyer do segundo andar do Teatro Coliseu, entre outros. Nesses salões, bem como nos cabarés, desfilaram orquestras de muita qualidade, entre as quais a de J. Pinto, Cabral Junior e seus Cubancheros, Tobias Troisi um exímio violinista, Hamleto e seus Rapazes, Luis Cesar, Bonfim, entre outras. A noite santista proporcionava muito emprego para músicos, razão pela qual surgiram artistas de qualidade como Paschoal Melillo, Plínio Metropolo, o baterista Oswaldo Argento, cantores como Mario Santiago, cujo grande sucesso era “Matriz e Filial”, de autoria de outro boêmio da noite santista: o cantor e compositor Lucio Cardim, que mais tarde veio a ser parceiro de Paulo Vanzolini. Havia um pianista que por muitos anos foi aplaudido na noite santista e nos clubes onde se apresentou: Tico-Tico.
Mas havia um “crooner” especial que encantava os pares que bailavam no salão da Humanitária. Um negro alto, esbelto, com pouco mais de vinte anos, e que tempos depois foi eleito Prefeito de Santos, mas não tomou posse por conta do golpe de 64: Esmeraldo Tarquínio. Dono de uma voz potente e belíssima fazia sucesso na noite encantando os participantes dos bailes onde se apresentava. E como ele tivemos Cleia Maria, Carlan que alem de cantor era coreógrafo e encenava pequenos espetáculos de teatro de revista, nas casas onde trabalhou. Mas além dos artistas nacionais e internacionais que se apresentaram na boca de Santos e já citados, não podemos deixar de enumerar outros mais como: Altemar Dutra, Dalva de Oliveira, Agostinho dos Santos, Roberto Luna, Francisco Egidio, Lana Bittencourt, Noite Ilustrada, Luciene Franco, Dóris Monteiro, Carlos Alberto, Leila Silva, Nelson Ned, Raul Gil, Demônios da Garoa, e o internacional Gregório Barrios, o rei do bolero.
Alem dessas apresentações de artistas renomados da época, haviam os shows montados pelas casas. Uma das grandes atrações era Elvira e suas Golden Girls, alem dos balés de Tia Ju (Jussara Lins) e de Guacy Mahu. Porém os shows que mais atraiam eram as apresentações das strippers, que ocorriam nas principais casas da boca. Já falei aqui do violinista Tobias Troisi, nascido na paulicéia desvairada, mas que adotou Santos e sua noite. Formou um conjunto de violinos conhecido como Os Violinos Mágicos de Tobias Troisi. Posteriormente juntou-se ao argentino Ramon Torreya e formou uma das melhores orquestras típicas do país: a Típica Ramon Torreya e Tobias Troisi.
Mas a boca não eram apenas os bares e cabarés. Haviam os restaurantes de qualidade, entre os quais o mais famoso de Santos: Chave de Ouro. Quando a boca começou sua decadência, seus proprietários resolveram fechar a casa, e suas instalações em “art nouveau”, na parte da frente, e um reservado à maneira da “belle-époque”, foram vendidas. Estão hoje no restaurante do ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos. Mas além do Chave, existia também o Galo de Ouro e o Old Kopenhage, cujos preços eram mais acessíveis aos frequentadores da noite santista. Mas o bom mesmo era comer o sanduba do Bolão, ali na calçada da Rua General Câmara, perto do Samba Danças. Ele servia um sanduba de salsicha, cujo segredo estava no molho que preparava e segredo esse que nunca passou para ninguém. Alem disso o pão sempre quentinho, fruto de um acordo que mantinha com uma padaria das redondezas, que faziam entrega de vinte a trinta unidades a cada quinze ou vinte minutos. A verdade é que se fazia uma fila enorme na calçada, ordenadamente, para comer o sanduba do Bolão. Com sua morte, fruto de um acidente de trânsito, a noite santista perdeu um dos seus mais ilustres representantes. Mais para o centro, na Praça José Bonifácio, havia o Café D Oeste, o Caravelas e o Gaiato, bares do fim de noite onde a boemia se reunia para o café da manhã e posteriormente, rumar para suas casas.
Assim era a boca de tantos encantos, onde havia muita malandragem e raríssima bandidagem. Aliás, bandido ali não se criava, pois, os leões de chácara dos cabarés davam um fim em quem aparecia para assaltar seus frequentadores. Naquele tempo a ronda policial era feita pela Polícia Marítima, alem da Guarda Civil e pelotões do Exército e da Aeronáutica. Não havia perigo para os frequentadores, pois quem se arriscava a descumprir as ordens do pedaço, acabava desistindo por antecipação.
Os que freqüentaram a noite santista nos anos 50 e 60 sabem do que falo, e muitos dos “causos” ali ocorridos estão transcritos pela pena brilhante de um dos maiores dramaturgos brasileiros: Plínio Marcos. Foi a grande seara onde Plínio colheu seus personagens, reais e vivos, e os transportou para um dos melhores momentos da nossa literatura dramática. Deu a eles a notoriedade fora das páginas policiais, e os colocou nos palcos do mundo, para serem vistos e homenageados pelas plateias não apenas do Brasil, mas também de vários outros países onde suas obras foram encenadas.
Muito mais há para se escrever sobre essa época, e sobre os fatos ocorridos nas dezenas de boites, bares e cabarés. Mas o tempo vai apagando parte da memória, e até fotos da época estão difíceis de ser encontradas. Também é sempre bom registrar que a tatuagem ou “tatoo”, foi introduzida no Brasil através do dinamarquês Knud Harald Gregersen, o “Lucky”, que chegando ao Brasil se instalou na região da boca, onde era muito procurado por marinheiros nórdicos e europeus. Era um artista de primeira grandeza, que fez discípulos e se transformou em uma das atrações da noite santista.
Prestes a completar oitenta anos de nascimento, se vivo estivesse, Plinio Marcos, nosso repórter de um tempo mau, poderia verificar que nada mudou. Exceto a constatação de que a boca do cais de Santos não mais existe. Sua seara foi dizimada. Que a mediocridade governamental continua a mesma, e os desvalidos e excluídos continuam sua saga de recolher as migalhas que caem da mesa farta dos governantes. E enquanto isso perdurar, a obra de Plínio continuará atualíssima, e as mudanças necessárias continuarão a ser proteladas, até o dia em que os brasileiros resolvam tomar para si, os destinos deste lindo país.
CARLOS PINTO
Jornalista
(20.09.15)
Carlos Pinto, uma beleza essa crônica. Quem viveu aquela época, com toda certeza, vai se rever nesse texto. No texto você menciona a cantora Leila Silva, minha cunhada que ainda está na ativa. Me lembrei aqui do Mauricy Moura. Como sempre, você acertou na mosca. É isso.
Abraço
Renê Ruas
Também gostei bastante do artigo do Carlos Pinto. Muitos dos locais e personagens citados eu conheci, outros não. Foi uma época marcante da noite santista. Parabéns. Abraços
Marcello
Obrigado amigos do Clube do Choro pela publicação do meu artigo nesse prestigiado blog.
Agradeço também os comentários do Rene e do Marcelo.Qualquer hora dessas, vou tentar um novo artigo sobre a Boca, pois muita coisa ainda está por ser dita. Um abraço.
Carlos, ficamos por aqui na espera. Que venham mais artigos.
Abraço.