RSS

O HOMEM E SUA SOMBRA

capoeira1“A minha vida é feliz. Eu sou assim como um galho que foi abrindo caminho, foi ao quintal do vizinho com a permissão da raiz. A África me deu o berço. Oralian agradeço. No Egito, Judéia, Roma em todo canto só é livre quem guarda no coração sua herança, quem tem total confiança e busca sua segurança na força de suas raízes.”
(Altay Veloso – Alabê de Jerusalém)

Entre meias lua de compasso, rabos de arraia, separa o visgo e tiririca foi que conheci o vagulino e ardiloso Mestre Sombra, ainda Roberto Teles de Oliveira. Ensacador, estivador e capoeirista, aluno do Mestre Bispo.       
Eu, ainda muito jovem, tinha total confiança nas raízes de meus ancestrais vindos do reino de Daomé. Agradeço também a Oralian que me apresentou, quando menino, a grandeza e a sabedoria dos velhos mestres de Aruanda. Landulfo, Daniel Feijoada, Diamantino Cavaco, Valdir e Vô Mariana que nasceu de Ventre Livre.
Desses velhos mestres me veio o Samba, o Choro, Folia de Reis, Lundu, Chula Raiada e que, como tatuagem, cravou minha alma definitivamente. Naturalmente fui beber água nas fontes dos Deuses do Panteão de Daomé. Ouvi Ogum e Oxóssi nos atabaques, no Abebé de Oxum, no Xére e nos Maracás de Ogum. Ouvi todos os cantares e dançares, Pastoris, Cheganças, Congos, Congadas e Moçambique.
A capoeira me veio por acréscimo. Jovem adolescente, mergulho nos mares revoltos dos livros e das histórias e conheço Jubiabá. Eis que encontro a tal capoeira nas páginas da Bahia de Jorge Amado.
Nas minhas andanças pelas vielas, becos e costado dos navios no cais do porto, fico sabendo, através de um marujo, que, lá pelas bandas do Grêmio da Estiva, clube de velhos estivadores, de uma roda de capoeira jogada por um capoeirista de nome estranho. “Sombra”, Mestre “Sombra”.
Um dia, que já nem lembro, fui ao Grêmio e lá encontro o calado mestre, ainda sem a carobinha branca e refugiado nos seus pensamentos. Sem dúvidas ali estava meu velho irmãozinho que eu já conhecera talvez do outro lado do Atlântico, em Daomé, em Benin ou em outras tantas terras das profundezas do Continente Negro do começo da vida deste vasto mundo.

“Da Bahia me mandaram uma camisa bordada, na abertura da camisa tinha o nome da safada, Lioné!”
“Olê Lioné! Cade Lianô? Qu’eu tava na varanda quando a morena passô, Lioné!”
(Cantoria da dança do Côco)

E fincamos nossa amizade de camaradas de muitos caminhos na criação da Associação de Capoeira Senzala lá pelos idos de 1975.
Fomos travando nossas conversas e nossas dúvidas nas voltas que o mundo dá camará e, mais do que amigo, ficamos camaradas, irmão, irmãozinho. Sofremos com nossas perdas e sorrimos a cada encontro de abraços fraternos.
Nos sons do berimbau e na batida do tambor, o sempre calado Mestre Sombra, que se exprime através dos olhares, segue a vida mostrando aos mais jovens, os caminhos, becos e vielas e, como dizia o poeta, as quebradas do mundaréu.
Na sagrada roda da capoeira muitos capoeiristas rodaram e dançaram e cantaram, muitos ficaram mesmo se afastando e tantos outros que se tornaram homens, pois que foram meninos nas voltas que o mundo dá.
O Mestre Sombra mostra que, mesmo sem pressa, podemos chegar na frente, não por soberba, mas por conhecimento dos caminhos percorridos com humildade e paciência e, ainda hoje, onde chega, fica na última roda esperando a sua hora, pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer disse alguém.
Por natureza e por sabedoria dos tempos, Mestre Sombra, nestes tempos, já com a carobinha branca como o capucho do algodão, fez por criar homens em outras terras de estranhos falares, imensa irmandade que se espalha pelo mundão a fora comemorando quarenta anos de vida nas rodas da capoeiragem.
Por tudo isso, meu velho amigo e irmãozinho, cá estamos nós, também com a carobinha branca, com filhos, netos e tantas rodas vividas ao som dos berimbaus, desejando outras tantas rodas para se jogar a capoeira dos velhos mestres de Aruanda do Panteão de Daomé, afinal, meu velho, o homem é, e sempre será a sua própria sombra até o final dos tempos.

“Ai! Eu não sou daqui, nem aqui quero morá. Coa ouro, coa ouro, peneira que coa ouro, Ai! Iaiá! Não pode coá fubá. Uma infeliz como eu, mora em qualquer lugá.”
(Cantoria da dança do Recortado)

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.

 


Your Comment