“Os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os leves balanços que o banco da areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e vencer os sombrios corredores. Já o fedor de mijo e de merda não esperavam ordem para invadir tudo fazendo arder o ar nas narinas e garganta.”
(Carlos Mauri Alexandrino – Jornal Preto no Branco em 1979)
O mirrado e quase fiapo menino era o queridinho da Vó, da Mãe, da Dona Zilda e da Dona Líbia, vizinhas da mãe do menino. Cheio de afagos e mimos. Os melhores biscoitos, café com leite e todas as gostosuras, cocadinhas, bolinhos de chuva, brigadeiro, canudinho de amendoim e de coco e o preferido, cajuzinho, tudo para o paparicado menino. Quando o irrequieto menino, que tinha bicho carpinteiro, aparecia com lagostinhas do canal, rã, ou ainda carás ou traías lá da Lagoa da Nova Cintra, sempre encontrava uma alma boa pra preparar as delícias. A vida era o melhor daquele pequeno mundo agarrado ao pé do morro do Marapé. Correr atrás da bola o dia inteiro nos infindáveis campinhos dos terrenos baldios. Subir e descer o morro nos fundos de casa e plantar arapuca pra pegar sabiás e gaturamos. O prazer maior do menino, porém, era pescar lá na prainha que ficava do outro lado da cidade, viagem quase impossível para o pequeno aventureiro. O trabalho começava mesmo era quando precisava subir o morro para tirar a varinha de bambu. Subir o morro até que era fácil problema maior, porém, era pedir para o Seu Agostinho, que tinha alma boa, pois conhecedor profundo dos mistérios das matas sabia do Boitatá, guardião das florestas e zelava por elas com a justa rudeza. Permissão dada o menino se embrenhava no meio do bambuzal e escolhia os melhores cortes de bambu verde. Cortar a vareta no lugar certo, deixar no telhado para absorver o sereno da noite, e, depois disso, no pequeno fogareiro, dar uma tostada para secar o fino bambu e deixa-la flexível e ao mesmo tempo forte para não quebrar. Por último, armar o cabresto na ponta da vara, juntar as tranqueiras e dar no pé para pescar lá na encantada prainha. Alpargatas e boné. Passava na casa de uns e outros, bem cedinho, bonde 37 e logo estava na tão esperada prainha que pesqueiro melhor não havia. E passava o dia que o tempo passava. Nesse tempo que passou como ave de mau agouro, surge, como notícia de um tempo ruim, uma parede imensa negra que escurecia a prainha. Um eclipse talvez, pois transformava a aurora de paz em noite fria e escura como breu. A imensa parede negra, assustadora, plantada no cais da prainha, deixava os meninos em pânico, mas, mesmo assim, traziam o balaio sempre com alguns pescados e siris. E o menino, mesmo assustado, logo cedinho já estava na prainha com suas tralhas e seus amigos e, aos poucos, porém, ia se acostumando com o estranho objeto. Passado alguns dias, a curiosidade, agora mais forte do que o medo levou a menino para a prainha e desta vez sozinho e sem as tralhas. Estava incomodado com aquela visão nada amistosa. Foi nesse momento que, junto com o ranger dos ferros vindos das entranhas da parede, ouviu gritos lancinantes, berros traduzindo dores terríveis de corpos sendo dilacerados e humilhados. Ficou petrificado, estarrecido com os gritos, berros e gemidos que teimavam em atravessar a parede negra e imensa. Sem entender, pensou em casa mal assombrada, casa dos horrores. Da parede negra surgiu um homem vestido de preto, de óculos escuros e, da beira do mar ordenou, com voz forte e dura, que o menino fosse embora e não voltasse mais para pescar na prainha. O menino nunca mais apareceu lá na encantadora prainha e nunca mais esqueceu os gritos aterrorizantes e aterrorizados. Pescar, caçar passarinhos e jogar bola passou com os anos, pois que o mundo gira e a lusitana roda e o tempo se fez assim. O menino, já um jovem adulto, vai reencontrar os gritos aterrorizantes e aterrorizados daquela imensa parede negra nas páginas nauseantes dos “Horrores da Santa Inquisição”, na garganta esmagada pelo garrote vil, nos olhos e nos corpos dilacerados de Guernica e no silêncio profundo e tenebroso de Auschwitz.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.