O Samba é um produto cultural brasileiro, de indiscutíveis raízes africanas. Durante algum tempo, buscou-se uma origem indígena para o termo “samba”. A razão era a existência, nas línguas tupi e guarani, de um vocábulo idêntico, significando “corda” ou “cordão”. Daí, num momento em que se teimava em apagar a presença negra da vida brasileira (mais ainda do que hoje), tentar-se comprovar essa origem; o que, entretanto, não se sustentou.
O berço africano – O continente africano se constitui de várias regiões distintas, cada uma com suas características, físicas e culturais. Ao norte, dominam o Saara, o maior deserto do mundo e o Mar Mediterrâneo; a leste e ao sul, regiões montanhosas e o vasto litoral do oceano Índico; a sudoeste, as estepes, desérticas ou de vegetação rala; ao centro e a oeste, as florestas, a área das savanas, e o litoral do oceano Atlântico. Dessa parte, e através desse oceano é que vieram os africanos que, com seu trabalho e suas culturas, ajudaram a construir a Civilização Brasileira.
A maior parte desses africanos veio do centro-oeste do continente, de onde hoje se situam, as Republicas de Angola, Congo-Kinshasa, Congo-Brazzaville, Gabão e Camarões. Boa parte veio também, de um pouco mais acima, do chamado “Sudão Ocidental”, dos atuais Nigéria, Benin, Togo, Gana, Guiné-Bissau e vizinhanças. Em menor quantidade, mas também importantes, foram os que vieram de Moçambique e arredores.
Os do centro-oeste eram majoritariamente “Bantos”. E são assim chamados pela mesma razão que nós chamamos “latinos”, a argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos, mexicanos etc. Latinos são os povos que falam línguas originadas do Latim (da Roma antiga), como português, espanhol, italiano, francês. E Bantos são todos os que falam línguas originadas de uma antiga língua chamada “Ur-Bantu” ou “Protobanto”. Acrescentamos que os africanos falam línguas e não apenas dialetos. Dialeto é apenas uma forma simplificada de determinada língua, usada em determinada região.
Os Bantos do Congo e de Angola foram os africanos que trouxeram para o Brasil a dança do Samba. Dança essa que, em contato com outras, provenientes de diversas regiões africanas, e até mesmo das Américas, foi, ao longo do tempo, tomando as variadas formas que hoje apresenta.
Falamos “dança” porque, na tradição dos africanos bantos, como entre grande parte dos povos tradicionais – aqueles em que os conhecimentos se transmitem oralmente – a música nasce para acompanhar a dança, a qual precisa da música para existir.
O padrão Banto – As músicas e danças tradicionais africanas refletem as características das regiões, áreas e zonas onde surgiram e se desenvolveram. Nas porções norte, noroeste e oeste do continente, a influencia árabe muçulmana é marcante; assim como na Etiópia (nordeste), um dos mais antigos redutos do cristianismo no mundo, a influência dessa religião é definitiva. E, no amplo território em que se localizam os povos Bantos, quase toda a África ao sul da linha do equador (linha imaginária que divide ao meio, horizontalmente, o planeta Terra) predomina um tipo de música e dança que foi fundamental para o nascimento do samba brasileiro.
Esse padrão coreográfico caracteriza-se pela formação de uma roda em torno da qual se colocam o solista da música, os músicos acompanhantes e os dançantes, encarregados do coro. Iniciada a dança, ao som dos instrumentos e ritmada por palmas, um ou uma dançante solista entra na roda, executa sua parte e chama outro (a), geralmente do sexo oposto, para dançar consigo ou substituí-lo. E assim, sucessivamente.
O gesto de chamada consiste em uma umbigada ou entrechoque de peitos; ou um toque com a perna; ou, ainda, um simples gesto cortês de convite à dança. Embora no ambiente banto também se registrem outras formas de dança (imitando movimentos de animais, por exemplo), essa é a destacada por diversos observadores estrangeiros, desde os primeiros que chegaram aos territórios bantos, nos anos de 1500 e 1600. E seus traços permanecem até hoje em danças de origem africana desenvolvidas em vários países das Américas, como Bolívia, Colômbia, Cuba, Peru, Venezuela… E principalmente no Brasil.
Do rural ao urbano – No início, as várias danças do tipo banto eram no Brasil chamadas de “batuque” ou “samba”, palavras de comprovada origem africana. Isso já vinha pelo menos da primeira metade dos anos 1800. E ocorria principalmente no ambiente rural, nos momentos de lazer e festejos dos trabalhadores escravizados. Assim, “sambas” e “batuques” eram, entre outros: o cateretê goiano, o coco alagoano e pernambucano, o caxambu mineiro, o tambor-de-crioula maranhense, o lundu baiano; e as várias formas de sambas de roda ainda praticadas, de norte a sul do País.
Com as migrações internas da população negra, escrava, liberta ou livre, os sambas rurais chegaram ao ambiente urbano, no qual foram incorporando elementos e ganhando corpo.
Interessante registrar, num parêntesis, a localização, na atual República do Benin, na região do antigo Sudão Ocidental, de ritmos musicais semelhantes ao samba brasileiro. E isso levou o pesquisador Marcos Branda Lacerda a concluir que essa música tinha chegado lá por obra de “retornados”, como foram chamados os oeste-africanos que migraram de volta para a África no século XIX, constituindo comunidades de descendentes de brasileiros (cf. CD/Encarte Drama e fetiche: vodum, bumba-meu-boi e samba no Benin. Rio, Funarte, Centro Nacional de Cultura Popular, 1998).
Feito o parêntesis, observemos que, na passagem para o Século Vinte, na cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, sob a influência da indústria fonográfica (a das “gravadoras”, produtoras e vendedoras de discos com músicas gravadas); e do advento e expansão das emissoras de rádio, o Samba começou a ganhar a forma com que hoje o conhecemos.
O mais importante desse momento é que, nele, o que eram apenas “corinhos”, refrãos destinados a animar as danças, foram se estendendo, abordando temas, contando casos, expressando juras de amor. E, aí, o simples “batuque” toma a forma de canção, que é a poesia lírica o satírica, apoiada em uma melodia e feita para ser cantada.
Durante algum tempo, o samba ainda hesitou em assumir-se como canção. Resumia-se em apenas uma parte fixa, contada em coro, para motivar as intervenções improvisadas dos cantores solistas. E esse modelo, ainda bem próximo do que alguns viajantes europeus viram e ouviram, outrora, na África, e registraram em seus apontamentos, resultou no que conhecemos hoje como “partido-alto”.
Além dessa forma, ancestral e resistente que é o partido-alto, o samba, na atualidade, é efetivamente um gênero musical que se ramifica em vários subgêneros ou estilos, como o pagode dos anos 80, o pagode-pop, o samba-enredo, o samba de terreiro ou de quadra… E até mesmo o estilo bossa-nova, prestigiado internacionalmente e que, quando nasceu, na passagem para a década de 1960 era chamado “samba moderno”.
Além disso, o samba continuou sendo, também, dança, com vários tipos de coreografias, como as seguintes: a do samba de salão, de par enlaçado, originada da dança do maxixe (antigo gênero, variante da polca) e incorporando figurações do tango argentino e de outras danças; a do samba de rua, dançado em cortejo, com os braços flexionados e em movimento alternado (com as mãos fechadas) na altura do peito, à moda africana – é a “evolução” tradicional das escolas de samba; o bailado de mestre-sala e porta-bandeira, remotamente originário de danças aristocráticas europeias; e, finalmente, o desempenho livre dos passistas solistas, desenvolvido a partir da dança do samba de roda baiano.
Em qualquer desses subgêneros, estilos ou formas, de música e dança, o DNA africano está presente, principalmente na composição rítmica, seja na lentidão sofisticada da bossa-nova, na pulsação do tantã nos pagodes, ou na riquíssima polirritmia das boas baterias de nossas agremiações carnavalescas.
Isto é o que caracteriza a africanidade do samba e sua importância como patrimônio inalienável do povo brasileiro.
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Nei Lopes é autor, em parceria com Luiz Antonio Simas, do “Dicionário da História Social do Samba” (Ed. Civilização Brasileira, no prelo), fonte principal deste artigo.
O qual foi escrito especialmente para o projeto “Matrizes do Samba”, do Centro Cultural Cartola, por solicitação de sua presidente Nilcemar Nogueira, guerreira do samba.
Ô rapaziada que pensa que entende de samba,
saca só o artigo do Mestre Nei Lopes sobre o assunto e, se não entender, cale-se para sempre. Falô grande Nei e obrigado pela colher de chá. O Blog do Clube do Choro de Santos se sente orgulhoso por poder contar com seus artigos.
Abraços
Renê Ruas