“Alguém precisa fazer uma fimose neste microfone”
(Aracy em 1980, SP)
Irônica, invocada, sem meias palavras e sem papas na língua, assim era “o samba em pessoa”, Araca ou definitivamente a Dama da Central. Carioca do subúrbio do Encantado, aquele mesmo do samba Caco Velho, do Ary Barroso, que ela gravou, de nome Aracy Teles de Almeida, foi, sem sombra de dúvidas, a principal interprete das músicas do irreverente e genial Noel Rosa.
Nascida em 19 de agosto de 1914, Aracy de Almeida, filha de ferroviário, ainda menina, cantava no coro de Igreja Batista, aos 19 anos, levada pelas mãos do compositor Custódio Mesquita foi cantar na Rádio Educadora onde conheceu o compositor Noel Rosa.
Na Rádio Educadora, depois Tamoio, Aracy deu de cara com Noel Rosa que não lhe deu muita atenção, porém, logo se aproximou; “gostei muito, você canta muito bem. De onde você é?”. No mesmo dia, aceitando o convite de Noel, Aracy foi parar lá pelos lados da Taberna da Glória onde conheceu os amigos dele, “uns malandros chapados”.
Lá pelas 4 da madrugada, de ônibus, Noel Rosa levou Aracy para casa, chegando ao Engenho de Dentro, foram a pé até o Encantado e acordando a mãe de Aracy, Noel grita; “Vim trazer sua filha aqui”.
Depois disso, Aracy passou a conhecer, assim diz ela, com Noel Rosa, os piores lugares do Rio de Janeiro, zona do baixo meretrício, além de conhecer também todos os malandros e a malandragem da boemia da Lapa. O pessoal do Rádio não gostava muito deles. Essa gente não presta, diziam.
Além de gravar quase tudo de Noel, Aracy gravou muito mais, entre rumbas, boleros, fox-canção, frevos, samba-canção, baião, marchinhas e até cateretê, com Tonico e Tinoco. Aracy fez parte do “cast” das rádios Educadora, Cruzeiro do Sul, Mayrink Veiga, Philips, Cajuti, Ipanema e, algum tempo depois, Tupi e Nacional.
Não se deve, em hipótese alguma, simplificar a carreira de Aracy, considerando-se apenas as gravações do repertório de Noel, pois, ela foi muito mais do que isso, foi, na verdade, uma grande cantora, de sofisticada interpretação, divisão perfeita, sabendo usar muito bem sua pequena e anasalada voz, além, é claro, de afinação impecável.
Aracy gravou, até 1937, ano da morte de Noel, nove músicas de sua autoria e, nos treze anos seguintes, até 1949, gravou mais cinco músicas, entre elas, o samba “João Ninguém”, a última música gravada.
Noel Rosa morreu em 1937 e, junto com suas músicas, ficou no ostracismo por um bom tempo. Em 1948, contratada pela Boate Vogue, Aracy volta a cantar os sambas de Noel, agora para uma plateia sofisticada, composta de intelectuais, jornalistas e muito diferente daqueles “malandros chapados” amigos de Noel.
Desse show, que vai até 1952, pelo sucesso alcançado, um grande disco é produzido, com antigas e inéditas composições de Noel, ganhando, inclusive uma capa de Di Cavalcanti. Com arranjos de Radamés Gnattali, da primeira a última faixa, um grande disco que trouxe Aracy de volta para o sucesso.
O sucesso, aliás, foi tão grande que, a gravadora Continental, lançou mais dois discos com a Aracy cantando Noel.
Em 1966, já musa dos “bossanovistas”, Aracy volta a gravar, agora pela gravadora Elenco, um show ao lado de Billy Blanco, com a apresentação de Sérgio Porto. Grava ainda, nesse ano, um disco fundamental chamado “Samba é Aracy de Almeida” acompanhada pelo conjunto de Roberto Menescal. Nesse disco estão por lá; Peterpan, Denis Brean, Blota Jr., Evaldo Rui, Lúcio Alves, Humberto Teixeira, David Nasser e outros tantos craques.
Descoberta e redescoberta várias vezes, Aracy, em 1968, pede ao compositor Caetano Veloso uma música para gravar. Caetano compõe o samba “A voz do morto” que, não se sabe por qual razão é censurado.
Ainda nesse ano se aventura em um show, na Boate Canto Terzo, com o humorista Pagano Sobrinho. Em 1976, participa de um show, na Boate Igrejinha, chamado “Um homem, uma mulher”, em dupla com a transformista Valéria.
Já um tanto esquecida, Aracy, em 1980, participa de um show meio amalucado no Teatro Lira Paulistano com os integrantes do Joelho de Porco, Zé Rodrix, Tico Terpins e outros artistas ligados a vanguarda paulista.
Silvio Santos perde, em 1988, uma de suas juradas do tresloucado programa de calouros, afinal, pagava muito bem e em dia. Morre Aracy de Almeida, dia 20 de junho de 1988, a Dama da Central, tranquila e em paz, na sua casa no Encantado, longe dos amigos e dos malandros chapados.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.
Boa cumpadi René, como sempre, texto precioso. Eu a conheci pessoalmente nos anos 70 no Chão de Estrelas. Foi o maior barato, não esqueço até hoje. Agora só falta aguardar o lançamento do livro (biografia de Aracy de Almeida) que o jornalista Sérgio Cabral está escrevendo. A esta altura, quero crer, já deve estar pronto. Abraços