RSS

PIÃO E FOGAREIRO

jogo_piaoA vida corria solta naquele pedaço, que, era, pra molecada, o centro do mundo. Tudo começava e terminava ali mesmo. Naquele pedaço o tempo andava bem devagar, sem pressa. A vida seguia seu tempo como as estações do ano se repetem ano após ano. Se o tempo era de bolinha de gude, tome bolinha de gude, se o tempo era de jogar pião, tome jogo de pião. Se, carnaval, tome desfile de carros alegóricos e fantasias. Se o tempo era de espeto, se era de fogareiro, tome espeto e tome fogareiro pra assar batata-doce. Bola? Bola não tinha tempo. De noite, de dia, de segunda a segunda, tome bola que gosto maior não havia. Bola de capão ensebada todo santo dia.          O Natal era a festa mais esperada. A molecada toda se reunia pra pegar limo no morro pra montar o mais esperado e venerado presépio do pedaço. Era o presépio mais querido e o mais caprichado. A ruidosa festa pra montar era a mesma pra desmontar no dia 6 de janeiro, dia de Reis. O que não podia faltar também e não faltava mesmo era o trio arrasa quarteirão, quebra-queixo, puxa-puxa e raspadinha. Não, caro ouvinte, não era o trio atacante da seleção marapeana de futebol e nem tão pouco o meio de campo da seleção portuguesa do grande comediante português Zé Fidélis que, quando se apresentava no Circo Bibi, formava assim: Não pega uma, Cara de besta, Pisa-Calo, Sarnento, Barrigudinho e Manquitola. Deixa que eu chuto, Panarício, Totó, Ranheta e Facada. O velho vendedor do quebra-queixo, puxa-puxa e raspadinha, não atrasava e nem faltava, passava todas as tardes como o realejo da canção popular. Os doces tão aguardados chegavam no carrinho do bom baiano Zé de Maria, dono da simpatia e da paciência. Chapéu de palha e o avental mais branquinho que o capucho do algodão, o nome bordado em vermelho no bolso e o sorriso largo já anunciava: – Coça o bolso aí molecadinha, que o quebra-queixo esta fresquinho. Vamos comer porque a vida não inflói nem contribói! Comer o quebra-queixo, o puxa-puxa e a raspadinha era a loucura da molecada só não era melhor que bater uma bolinha na rua, afinal não tinha doçura maior. A dureza era geral. Dinheiro, naquelas bandas, era um produto quase de magia. Existia, mas ninguém via. A pobreza era o dia a dia de todos. Dentista, lá como cá, nem pensar, era mesmo pra gente muito rica. Então, como deixar de saborear a delícia das delícias? O dente podre ficava pra depois. Moleque nenhum tinha dinheiro. Brincar na rua era o limite. Se dinheiro não havia, como assistir os palhaços do Circo Bibi? Como assistir as matinês do Cine Marapé? E a raspadinha? O quebra-queixo? O puxa-puxa? Sem dinheiro, só jogando bola. Pra arranjar uns trocadinhos a molecada dava seu jeito. Carrinho de rolemã pra fazer carreto na feira. Engraxar sapatos na cidade ou vender gibi velho na porta do Cine Marapé, no canal 1, ou no Cine Avenida, lá no canal 2. Sempre se conseguia um dinheirinho e, assim, se garantia os doces do bom baiano Zé de Maria. Comer os doces do bom baiano era uma das paixões da molecada daquele canto do mundo. Logo, porém, a molecada percebeu que o tempo não passava tão devagarzinho assim e que, aquele pedaço do fundão, também não era o centro do mundo. O quebra-queixo, o puxa-puxa e a raspadinha, certo dia, desapareceram junto com o pacato Zé de Maria e, aí a molecada entendeu porque a vida, caro leitor amigo, não inflói nem contribói.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


Your Comment