Morava no morro da Nova Cintra o Tio Abreu. Português até a medula. Foi um dos pioneiros a morar no alto do morro. Quando construiu sua casa, a Nova Cintra tinha poucos moradores, entre ilhéus, espanhóis e negros. Convivência das mais pacíficas. Todos, além das plantações, criavam porcos, gado leiteiro, galinha, pato e cavalos. Plantavam inhame, batata-doce, banana, milho e cana de açúcar. Daí foi um pulo para que alguns moradores montassem o seu próprio alambique, fabricando a tão conhecida cachaça morrão do morro. Tão forte que, ainda hoje, derruba o cristão sem muito esforço. Tio Abreu foi um dos poucos que não montou o alambique, preferiu apenas beber o saboroso morrão pela vida toda. Além de assíduo freqüentador dos alambiques do morro, Tio Abreu era estivador no cais do porto. No quintal do chalé, criava porcos, galinhas, patos, marrecos e ainda o enorme cão fiel, um amado pastor alemão. Dependendo da situação, o homem, às vezes, era português, outras vezes, espanhol. Na estiva, Tio Abreu, não era tão assíduo quanto era nos alambiques, principalmente o do Arlindo, que ficava bem em frente a sua casa, bastando apenas atravessar a rua. Na maioria das vezes retornava pra casa engatinhando, pois que o morrão derrubava mesmo. A carraspana do Tio era curada pela infalível gemada de caracu com ovo, claro, ovo de pata, que era receitada para curar todos os males. Desde mijacão até frouxidão. O leitor deve ter percebido que eu falei aí em cima que o Tio às vezes era português outras vezes era espanhol, pois, quando era forte a alma lusitana, ele fazia coisas que até Deus duvida. E Deus duvidava. Entre uma dessas memórias lusitanas, apaixonado por motocicletas, não vacilou, trocou o chalé que morava pela motocicleta do vizinho. A moto se desfez e o Tio Abreu ficou pagando aluguel por toda a vida. A Tia Leonor, irmã de minha mãe, pacífica como sempre, mais uma vez ficou calada. Tia Leonor resignada, não reclamava, nunca. Só saia do sério, doida da vida mesmo, era quando o homem chegava em casa alta madrugada com a cachaça saindo pelo ladrão, acompanhado de alguns camaradas da estiva, todos, também, com a alma encharcada de tanta água benta. Para piorar a situação mais ainda, o Tio cismava de matar um pato pra fazer ensopado pra curar a tal cachaçada. Caro leitor, nesse momento o parafuso espanava e a Tia Leonor, como naquele samba do Wilson Batista, recebia o Nero e botava fogo no mundo. Esse, amigos, era o lado lusitano do Tio. Caso muito comentado no morro foi quando o lado espanhol do Tio explodiu. Nesse dia, um sábado com muita chuva, ele até que chegou bem, isto é, sóbrio, porém quando deu de cara com a conta de luz da Light, ficou com os cornos virados no siri, pois a conta estava mais alta que o meu saldo devedor no banco e o Tio Abreu, revelando o seu forte lado espanhol, resolveu roubar energia do vizinho. Tentou fazer um gato esperto muito mais para o malandro otário do que para o malandro esperto, esperou a madrugada chegar, botou a escada, subiu, e, na hora de engatar o fio, levou um choque de arrancar o tampo da cabeça, quase um terremoto nos cornos, despencou lá de cima, quebrou perna, braço, algumas costelas e só não morreu porque Deus quis, pois que protege as crianças e os bêbados, dando um trabalho do cacete pra ser removido pra Santa Casa. Ficou internado um bom tempo. Dependendo da ocasião o Tio conseguia juntar os dois lados, o espanhol e o português, e, aí era merda na certa. Quando o filho Minguinho, o caçula, foi casar, Tio Abreu foi contra porque foi contra e pronto. Nas gostava da moça nem de sua família. Não foi na Igreja nem em lado nenhum. Durante a festa na casa da nora que ele não suportava, Tio Abreu apareceu muito doidão de cachaça, todo sujo, descalço, calças arregaçadas na canela, com uma vara de pesca e um puçá jogado nas costas. Doce vingança. Vexame total. O tio, desta vez tinha razão, o casamento não durou quinze dias. A moça e a família não valiam porra nenhuma. De passagem, caro amigo leitor, eu falei aí por cima, que a grande paixão do tio era o seu cachorro e era mesmo. O bem tratado cachorro era um pastor alemão dos graúdos que tinha mais mordomia que os filhos do tio. O amado cachorro andava pra cima e pra baixo com o tio que subia e descia o morro de bicicleta, pois que ônibus não havia. De manhã cedinho, o tio colocava uma sacola na boca do pastor alemão que descia o morro e lá na padaria, no ponto final do bonde 16(o lavageiro), Seu Pereira, só ele, colocava o pão e o leite e o bicho retornava com a encomenda. O tal cachorro era na verdade o grande companheiro do Tio. Conto para o amigo leitor, com ressalvas, pois não se sabe até hoje o que afinal aconteceu com o cachorro mais conhecido da Nova Cintra. A versão que chegou e, que me parece ser a mais próxima da verdade, foi que o Tio Abreu, certo dia, mais manguaçado que o de costume, num ataque de fúria, matou o cachorro. Não sei amigo, ainda duvido desta versão, posso, porém, afirmar sem medo de errar que, foi a partir desse fato que a vida do Tio Abreu começou a ir pro saco. Teve tempo, ainda, o Tio Abreu, no final de sua vida, cuidar da tuberculose do primo Waldemar que morria a cada minuto consumido pela doença. Conseguiu, neste momento, juntar o coração bondoso dos dois lados, português e espanhol. Só se sabe que o tempo já era e o Tio Abreu, depois da morte do saudoso cachorro, foi definhando, foi deixando de querer viver e fez o caminho da roça com todos os méritos. O enterro do Tio foi um dos mais concorridos do Morro da Nova Cintra. O carro funerário cruzou o morro da Nova Cintra, com pompa e circunstância, descendo pela caneleira até o Saboó. Com foguetes, rojão e buscapé.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.
Caro Renê,
Parabéns novamente pela fluência da escrita.
De fato, os portugueses não são muito diferentes do
espanhóis, embora sempre dirão o contrário lá na Ibéria atual. E aqueles nossos portugueses e espanhóis também já não são tão diferentes de nós outros Santistas. O exemplo está no seu texto: português nenhum vende casa pra comprar moto, definitivamente. Escolher a moto em detrimento da casa já deve ser lá coisa de brasileiro de morro que gosta de festa, pagode e aventuras, ou seja, nós mesmos …
Um abraço do companheiro,
Marquinho
Marquito, amigo de esporádicas rodas de choro, obrigado mais uma vez pelo toque.
Na verdade, o Tio Abreu, lusitano de quatro costados não trocou a casa pela moto porque
era português e nem era português porque trocou uma pela outra, era muito mais do que
isso, era simplesmente o desprendimento que
tinha por bens materiais pois dizia sempre. “Vale mais um gosto que um tostão no bolso.”
Devo confessar, por toda a sua porraloquice, o Tio Abreu foi mais um dos meus ídolos de moleque.
Abraços
Renê
Pois é o que eu digo, meu bom amigo Renê. Seu bom tio Abreu já não era Português. Acredite. A boa vida nos trópicos abrasileirou-o rápida e naturalmente … hehehe …
Abraço do leitor e companheiro de acordes,
Marquinho
Meu estimado Marquinhos, amigo de bemois, sustenidos, fusas e semifusas, você tem toda
razão o homem não só abrasileirou-se como
espanhalou-se e africanou-se também. Ele, na
verdade, conseguia, numa lata sem fundos,
transportar água de um lado para o outro,
fazer um traço no chão e passar por baixo. Gênio.
Precisamos tocar meu caro.
Abraços
Renê
Amigos, alguém sabe me dizer se o Alambique ainda funciona ?