O trabalho era duro. Descarga de milho dos vagões da antiga Sorocabana e da Santos a Jundiaí, no cais. O vagão carregado de milho, no alto verão, cozinhava ovo e a cabeça do cristão. O calor, meu camarada, era de rachar, assava até pensamento. O pó do milho entrava garganta abaixo e deixava o vivente sem poder respirar. Aprígio e Dandão formavam a dupla que mais descarregava vagões. Os caras eram os campeões. Trabalhavam como dois malucos. Por nada é claro. Morreram muito cedo. Como todos ali. O salário, com perdão da má palavra, era uma merda. Poucos conseguiram se aposentar, não dava tempo, morriam cedo. Pois é, amigo velho era aí nessa mistura de inferno e inferno é que trabalhava o nosso estimado Abílio. Abílio veio do interior do Sergipe tentar a sorte e, como a grande maioria, sorte nunca teve na vida e não recusava trabalho, pegava no pesado sem reclamar. Trabalhava dia e noite, sábado, domingo e o cacete a quatro. Conseguiu um quarto numa pensão miserável ali entre o Bairro Chinês e o Valongo. E assim o nosso Abílio ia tocando a vida. Às vezes não comia, outras vezes comia nada e, quando a sorte tirava um sarrinho nele, ficava com a marmita do Aprígio, com quem logo fez uma grande amizade. Abílio, certo domingo, aceitou o convite do Aprígio e foi almoçar na casa do amigo. Conheceu lá uma cabrocha e logo se apaixonou. Abílio caiu de quatro no ato e logo ficou com aquele sorriso bovino, é isso mesmo, sorriso de filhinho de papai rico. Num piscar de olhos se casaram. Aprígio tinha um terreninho em Samaritá e deu para o casal. Em dois tempos o chalé estava pronto, pintadinho de azul e rosa, com varandas, janelas e quintal. Uma beleza. Samaritá era apenas uma pequena estação de trem com muita vegetação rasteira e pequenas árvores. Paraíso dos coleirinhas e sanhaços. A feliz noiva chamava-se Raimunda. Baiana de nascimento. Veio muito pequena para Santos e foi viver com o tio Aprígio no Itapema. A morena de olhos tristes, perdidos no horizonte, deixava todo mundo apaixonado. Logo era Mundica pra cá, Mundica pra lá. Mundica era a dona dos ais do Abílio. Falava muito pouco a Mundica. Abílio trabalhava muito mais. Ficava em Santos a semana toda trabalhando dia e noite. Voltava no domingo apenas. Certo domingo, pela manhã, Abílio chegou em casa e encontrou a vizinha, Dona Ondina, tomando o café logo cedinho. Abílio até gostou. Mundica precisava de companhia, pois que ficava sozinha a semana toda. Na segunda-feira, Abílio pegava o trem e retornava pra Santos. De Samaritá pra Santos e de Santos pra Samaritá. No trem de Santos pra Samaritá Abílio chegou alegre e feliz em casa e encontrou Mundica e a vizinha Dona Ondina com o sobrinho, o Jurandir. Dona Ondina era toda, toda pelo Jurandir. O menino era mantido com todos os gostos e mimos pela tia zelosa. As vizinhas faladeiras de plantão diziam que o menino não era sobrinho coisa nenhuma e, que, só era mantido pela Tia Ondina porque os predicados do tal menino eram bem avantajados, diziam também que o menino socava o pilão sem dó nem piedade. Abílio quase nem tinha tempo pra ficar com a querida esposa. Não conseguia botar o paio na dobradinha. Passar a lingüiça na farinheira nem pensar. No cais, sonhava todas as noites com a amada Mundica. E, foi assim que, pensando na precisão da patroa e precisado que estava também, Abílio pediu dispensa no sábado, pegou o primeiro trem e chegou lar doce lar lá pelas dez da noite. O quadro era de horror, claro, horror para o Abílio. Na cama do casal, Mundica, Dona Ondina e o menino Jurandir, faziam inveja até para o afamado e festejado Kama Sutra. A esbórnia era tão grande e muito mais enrolada que passado de político que deixou o nosso desafortunado Abílio confuso sem saber o que estava acontecendo. Ficou deveras intrigado não conseguia distinguir de quem era as bundas nem de quem era os peitos. Só conseguia distinguir uma coisa, claro, muito a contra gosto, a estrovenga do Jurandir, pois que era bem visível o enorme mastro apontando para o céu. Abílio saiu calado, bebeu todos os desgostos do mundo no boteco do Botelho, saiu meio pregão, meio zuaga e foi se deitar no trilho do trem para morrer com um pouquinho de dignidade que pensava que ainda tinha. Ficou ali, imóvel, esperando o trem passar e os amigos tentando demover o agora corno duplo da idéia do suicídio. Pois é, caro leitor, quando o trem apitou na primeira curva, o nosso quase suicida se levantou dos trilhos e, correndo como um louco pelas ruas da pequena estação desapareceu de Samaritá como nuvem de fumaça. Grande Abílio Apito de Trem. Não voltou nunca mais. Nem para o trilho e nem para o milho.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.
Deliciosas essas cronicas do meu amigo Renê. Retratam o dia-a-dia dos personagens da vida real.