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DIDI CANELA GROSSA

Estiva

“Choro não é jazz não. Choro é no quintal.”
                         (Didi Canela Grossa)

A notícia chegou quase no final da tarde. É moçada o Canela Grossa pegou o bonde linha um. Foi pra roça. Para os amigos, partiu desta pra melhor, para os inimigos, desta pra pior, tinha muitos pecados pra pagar. Uma mistura de tristeza e nem tanto de surpresa. Afinal de contas é o tipo de desastre anunciado. Alguém comentou que o malandro não conheceu médico nem no parto, pois que nasceu pelas mãos de Dona Zilda, exímia parteira. Dizia o Didi Canela Grossa que, médico na mesma calçada, ele mudava de calçada. De branco só pai de Santo ou vendedor de sorvete. Comia de tudo e bebia muito mais de tudo. Da pura branquinha a temperada com carqueja.            
O carnavalesco e bom malandro Didi Canela Grossa, quando Chefe de Bateria do Bloco do Boi, era conhecido também como Lorde Marapé e seu apito de zinco. Na bateria do afamado Bloco do Boi o degas era o timoneiro, era quem mantinha a negrada na linha. O máximo que aceitava da rapaziada era um puro de Pernambuco, mesmo porque não era mole carregar e batucar aquele surdo de carbureto. Iniciava o desfile pesando vinte quilos e terminava pesando cento e cinqüenta. Mano velho, pra agüentar o desfile pelas ruas do Marapé, no verão de 40 graus, só na fumaça da liamba ou então de cara cheia de muita mamãe sacode.
O Bloco do Boi era o grande amor do Canela Grossa. Fazia qualquer sacrifício para comandar a bateria do bloco. Além do braço forte, o homem vinha recomendado, pois era o timbeiro oficial do Regional do Seu Lili e isso meu caro amigo, não era pra qualquer um. Canela Grossa andava sempre de calça branca, sapato branco, camisa floreada e cabelos esticados na base do gumex. Chegava quase sempre sorrindo o sorriso mil e um e saudava o pessoal, sem nunca ter ido à Bahia:
- “Salve a Bahia, Saravá sua banda, Salve o Senhor do Bonfim!”
Estivador devagar quase parando, bom de conversa, trabalhava no cais, nos porões dos navios. Parceiros da estiva diziam que o pranteado Didi só ia nas boas, ou seja, nos trabalhos sem muito esforço físico, de preferência de portaló, ali em cima, no convés, dando ordens pro guindasteiro e anunciando o guarda em baixo.
Ficava injuriado quando algum companheiro dizia:
- “O amigo Canela não é gordo não, só é mais alto deitado que em pé”.
O tal perdia a calma e logo queria partir pro pau. Ficava nisso. A grande felicidade do homem, porém, alem de tocar no Regional do Seu Lili e comandar a bateria do Bloco do Boi com seu apito de zinco, era sem dúvida alguma o caudaloso almoço e janta do Bar do Camilo, conhecido também como Bar do Fantasma, pois que funcionava das seis da tarde às seis da manhã. O almoço ou a janta do Canela Grossa, pra ele não tinha diferença, podia ser as três da tarde ou da madrugada, era o de sempre: Feijoada das gordas, sarapatel, rabada com agrião, dobradinha com muito paio e costelinha e o preferido leitão assado tudo regado com muita cachaça e o copo de conhaque com mel, também conhecido como vela sete dias sete noite, para o arremate final. Cigarro convencional não fumava de jeito nenhum. Bom de apetite, em matéria de comida não tinha preferência, pois traçava de tudo, de vegetais (qualquer um) a todo tipo de carne esquisita, porém só não comia de jeito nenhum mesmo era o tal de caranguejo, dizia: Caranguejo, meu chapa, é comida de trouxa, de mané. Tô fora.
Quando pintava no pedaço mais enfeitado do que quarto de dona de bordel, ou seja, sapato branco, meias pretas, calça branca boca de sino de vinco impecável, camisa branca de cetim brilhoso de baliza das Dengosas e o cabelo quase molinha de isqueiro esticado na base do gumex, o mandrião Didi Canela Grossa logo se apresentava com aquele papo de cerca Lourenço de sempre:
- “Salve a Bahia, saravá sua banda, salve o Senhor do Bonfim, vou me desguiando que hoje é dia de fazer sexo com a Dorotéia, vou cobrir a cabrocha. Hoje é dia cobertura. Vou cometer um sacode Iaiá na nega.”
Tudo papo furado, pois que, no fundo, o nosso Didi Canela Grossa não largava da patroa de jeito nenhum e justificava: Afinal meu irmão, quem faz melhor rabada que a dona encrenca? E confirmava:
- Abençoado, não troco a dona encrenca por outra de jeito nenhum, nem vestida de ouro, bem sabe o mano velho, que, quando o malandro arruma outra mulher, essa outra vem sempre acompanhada com três filhos e o carnê da Casa Bahia. Sem essa malandro!
Era assim o tempo do Didi Canela Grossa, passando de lingada em lingada, de pau de carga a pau de carga.
Nos últimos tempos de vida, Didi, o Canela Grossa, fazia parte da diretoria da estiva, era o encarregado de comunicar acidentes ou a morte de algum companheiro ocorrida durante o trabalho. Chegava na casa da família sem o sorriso mil e um e anunciava com grande eloqüência:
- “Salve a Bahia, salve o Senhor do Bonfim. Ô mais velho, o Juvenal foi pro saco. Vacilou no porão e se fudeu, não deu tempo nem de encomendar a alma do malandro. Ali meu camarada, o vagabundo chora e a mãe não vê. Era assim o nosso Didi Canela Grossa. Discreto como um navio graneleiro.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde. É diretor do Clube do Choro.


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