A figura, Devaney chegava manso, calça de tergal de boca fina e bainha italiana, sapato de camurça bom de fuga e logo ia cantando:
- “Pra que mentir, se tu ainda não tens a malícia de toda mulher, pra que, pra que mentir?
- É do Noel Rosa, manjas? Grande esse Noel, não?
- O malandro aqui tem canções dentro do peito. Não preciso de pulmão.
Devaney respirava canções e quando não respirava canções, cantava o jogo:
- Essa ganha essa perde nas voltinhas que eu dou e o otário não sacou e logo dançou. Diga lá malandro onde está e toma o carvão da banca na mão grande.
O otário sempre perdia. E assim começava a dura labuta do malandro Devaney no jogo da chapinha. Dura labuta mesmo meu amigo, pois volta e meia a justa baixava, dava um sossega neguinho no mandrião e levava o homem pra passar umas férias forçadas no xelindró. Vagabundagem. Umseteum.
O vivaldino Devaney chegava todos os dias lá pelas quatro da tarde e montava a banca sempre no mesmo lugar, bem ali na João Pessoa quase esquina da Martim Afonso pertinho da Quitanda Lisboa, protegido que era pelo coração mole dos irmãos quitandeiros Elídio e Luis. Quando, raras vezes, conseguia fugir da lei logo se refugiava nos fundos da quitanda. Os homens da lei até sabiam, mas respeitavam o pessoal da Lisboa, pois, que, de quando em vez levavam um franguinho pra casa que ninguém é de ferro.
O danado do Devaney, camelo em tempo integral se defendia:
- Umseteum não, que não engano e nem passo a perna em ninguém, pois que no jogo não tem esperto nem otário. Umseteum só na vida meu bom. Eu só dou uma pilha na ambição do vivente e aí o espertotário dança, pois bem sabe o amigo leitor que olho grande não entra na China, em casa de vagabundo malandro não pede emprego e mão de galinha não mata o pinto.
Pois assim seguia a vida do Devaney, com umas merrecas no bolso depois de tirar uns pixulés de algum espertotário, aparecia lá no Carioca pra jogar conversa fora e traçar o melhor feijão com arroz e bife da cidade, no Palladim. Chegava como sempre cantando uma nova canção:
- “A tarde quando de volta da serra com os pés sujinhos de terra, vejo a cabocla passar ….”
- É do Ary Barroso. Manjas? Grande esse Ary, não?
Na maré baixa das chapinhas, Devaney reforçava o orçamento atuando como lanceiro no bonde 19, entre doqueiros e estivadores em tempos de carteiras recheadas.
Não vamos ser injustos com o Davaney, ele até que tentou, pois, num acesso de quase loucura, conseguiu um emprego, dito honesto. Foi trabalhar numa empresa de cobrança. A tal empresa montava uma bandinha, fantasiava seus funcionários, chegava na residência ou na empresa do infeliz devedor e fazia um carnaval dos diabos anunciando aos quatro ventos o mau pagador. No seu primeiro e último dia de trabalho, Devaney, compenetrado e fantasiado de Pierrô, foi executar uma cobrança lá pelos lados da Vasconcelos Tavares, pertinho da Igreja do Rosário. A bandinha atacou de carnaval fora de época, com sirenes e buzinas quebrando o silêncio do comércio local. Convidado pelo mau pagador para uma conversa, digamos, amigável, Devaney tomou um cacete de criar bicho apanhando mais que charuto em boca de bêbado. Saiu carregado. Aí, meu amigo, trabalho honesto nunca mais e, ainda na maca Devaney cantarolou o samba do Wilson Batista:
“Eu vejo quem trabalha andar no misere. Eu sou vadio porque tive inclinação, eu me lembro era criança tirava samba-canção.”
Devaney desaparecia por uns tempos e nessas sumidas se perdia lá no Pepe Musicas, onde pegava os discos do cantor das multidões, Orlando Silva, seu cantor favorito, que, até tentava imitar, se trancava na cabine e ficava alí horas e horas junto a vitrola, carregando o peito de canções. Seu Pepe, grande alma, não se importava, pois também tinha canções no coração.
Quando reaparecia pra pegar o feijão com arroz logo cantava uma nova canção:
-“Eu gostei tanto, tanto quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.”
- É do Lupicínio. Manjas? Grande esse Lupi, não?
Nas idas e vindas do bonde 37 o pessoal descobriu que o homem, por vezes, baixava na Santa Casa. Insuficiência respiratória, enfisema, balão de oxigênio e o cacete. Candidato mais que certo pra ir pra roça, partir desta para melhor. É isso mesmo. Pegar o bonde linha Um, viagem final para o Saboó, que, Paquetá, ouvinte amigo, é pra defunto de alta patente.
Tão logo dava uma respirada melhor, lá estava o Devaney na João Pessoa em frente a quitanda Lisboa:
- Chega mais meu irmão, diga lá, essa ganha, essa perde nas voltinhas que eu dou. Pega o carvão meu irmão.
Pois é, não deu nem tempo de levantar uns trocados e nem de recolher a banca. A justa chegou e o Devaney não teve tempo de se desguiar pra quitanda, correu como um louco até a Praça Mauá, chegou mais morto que vivo, procurava o ar e não encontrava. Não conseguindo respirar e com muito esforço, respirou fundo e mandou:
- “Adeus, adeus, adeus cinco letras que choram…”
E mais não disse e nem cantou. Devaney pegou mesmo o bonde 1. Derradeira canção. O homem respirava canções.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.