“O que vem de lá que tanta pula?”
(Vadinho, fiel escudeiro do Barba de Milho)
Barba de Milho vivia só. Morava de favor e bota favor nisso, num quartinho nos fundos da quitanda do Emílio, ali pelos lados do pé do morro. A maior parte do tempo perambulava pelo bairro, onde teimava em viver de pequenos serviços na casa de uns e outros. Amargurava lembranças. Nem sempre foi assim. Ninguém sabia do seu passado nem da sua vida, e, nem tão pouco do seu verdadeiro nome, o chamado nome de batismo. Barba de Milho. Esse era o nome do homem e pronto. Poucos sabiam do disse não disse da vida do Barba, entre eles, apenas o Vadinho e o Geraldão amigos de copo e calçada, além do Emílio, é claro.
Contava o Emílio que o Barba de Milho era o único sobrevivente de uma família de muitos irmãos, do triste desabamento do morro do Marapé, onde morreu muita gente e muita família se desintegrou, desapareceu, isso lá pelos idos dos anos cinqüenta e esse era o tanto que sabia.
Depois do desastre o Barba emudeceu, nunca mais andou com documentos, trazia apenas uma tatuagem no braço. Amor de mãe. Vivia morto em vida. Ele era o seu próprio documento. É isso amigo, só o corcunda sabe como deita.
Dizia ainda o Emílio que, antes do fatídico desabamento, que infelizmente acabou com muita família marapeense, Barba de Milho trabalhava na antiga Estrada de Ferro Sorocabana, onde, pelos longos cabelos brancos era conhecido também como Algodão Doce, apelido, aliás, que odiava.
O único costume, mais que um vício, da estrada de ferro que ficou com o Barba, foi o de fumar charuto. Andava pra cima e pra baixo, sem destino, com um vagabundo charuto dependurado na boca, deixando um rastro do perfume do tal charuto que tinha um mau cheiro do cacete e que fedia mais que consciência de político e só retornava à noitinha para repousar no quartinho da quitanda.
Em matéria de bebida não tinha preferência por nome e nem por sabores, bebia da pura e de carqueja a cambucí com a mesma sabedoria.
Certos dias, quando estava assim assim, meio mela, meio moafa, Barba de Milho dava uma de valentão e chamava pro pau o imenso Geraldão que era um negrão de muita paz. E se gabava:
- Geraldão tu não é de porra nenhuma. Tu anda com dois pé direito. Fui coveiro oito anos e nunca enterrei defunto que tu matou!
Pelo menos duas vezes no ano a amargura e a tristeza do Barba de Milho desapareciam. Era, quando, nas férias de julho e de final de ano, surgia como por encanto lá no Marapé, num terreno baldio, em frente ao Bar do Seu João, o Circo Bibi. Bem, caro leitor amigo, aí o Barba se transformava num outro homem. Tomava banho, cortava o cabelo e até arrumava roupas novas, ou quase, dadas pelo Emílio e não perdia uma sessão do Circo, apaixonado que era pela trapezista e pelos equilibristas. Rolava de rir com os palhaços e chorava de torcer o lenço com o drama Mamãe Dolores. Sonhava em ser trapezista. Sonhava em ser equilibrista. Ajudava o pessoal do circo na montagem e na desmontagem da lona e das arquibancadas. Quando o circo baixava as lonas o Barba de Milho voltava a ser o mesmo de sempre. Bebia copos e garrafas do Bar do Seu João ou do Bar da Carminha e acabava dormindo pelas calçadas. Bebia o mundo até não poder mais. Sonhava e sonhava com a bela trapezista.
O nosso sonhador Barba de Milho gostava tanto do Circo Bibi que não titubeou quando teve que defender o Homem Sapo que saiu na porrada com o manhoso Déca. Déca, malandro capoeira, mais folgado que colarinho de palhaço, resolveu, dando uma de migué, entrar de graça no circo, pois se achava o maioral do pedaço. Deca, sem mais aquela, teve que bater de frente com o bilheteiro que também era o contorcionista. O Homem Sapo. O homem era difícil de cair. Diziam que ele tomava azougue. Parecia até o elástico Borracha, exímio baliza das Dengosas. Deca deu rabo de arraia, deu banda e meia-lua e o tal Homem Sapo se contorcia, rolava daqui, rolava dali, caia e levantava, pulava pra cá, pulava pra lá, cai não cai, tinha molas nas pernas e nessas de levanta mais não cai, o malandro Déca desistiu, se desguiou na miúda e foi cantar noutro terreiro.
O tempo passa que passa na voltas do bonde trinta e sete e no terreno, que era baldio, em frente ao Bar do Seu João, num piscar de olhos, em vez do circo, surgiu um pequeno prédio e a cortina do circo fechou de vez. Nunca mais voltou ao Marapé.
A vida do Barba que era nenhuma, piorou pra pior. O homem passou a beber o mundo de dia e de noite, só parava quando desmaiava nas calçadas. Coma profundo. Coma de tanta tristeza e solidão.
Sonhando com o circo, acordou do coma e, sem rumo, caindo pelas tabelas, envergado pelo vento e se escorando nos muros, foi parar lá no canal 1. Era o próprio trapezista se equilibrando na mureta minúscula do canal. E, ás do trapézio, se lançou no espaço, tropeçou no ar, levou uma rasteira do além e se arrebentou no meio do canal. Água pelo tornozelo. Deu o couro às varas. Morreu afogado. Sem aplausos. Não comeu castanha no Natal e a platéia nem pediu bis.
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.