(Homenagem Póstuma)
PRIMA, corda mais fina de alguns instrumentos como o violino, o violoncelo e a guitarra, que dão som mais agudo. A nota geradora da série dos harmônicos superiores ou inferiores – nota que serve de base. Na liturgia católica, significa a primeira das horas canônicas, correspondente as seis da manhã. BORDÃO, nota grave, prolongada e invariável que caracteriza certos instrumentos, dentre eles, a gaita de fole e a sanfona; corda de tripa ou de aço coberta com fio metálico que lhe aumenta a grossura e permite maior tensão. O termo deriva do francês “bourdon”, onomatopéia – palavra cuja pronuncia imita o som natural da coisa significada (murmúrio, chiado etc.) – do zumbido do besouro ou do zangão. Resumindo, pois, em linguagem mais simples, Primas são notas mais agudas e Bordões notas mais graves.
Feito esse intróito – aliás, necessário – para especificar corretamente a etimologia das palavras, passo a narrar a trajetória deste conjunto musical, com certeza, dos mais destacados de nossa cidade. O conjunto “Primas e Bordões”, veio à luz neste universo musical já faz algum tempo. E bota tempo nisso. Bandeira Jr., em seu livro “História do Carnaval de Santos”, na página 53, faz referência ao surgimento – em 1963 – de dois Choros Carnavalescos: o Chorões Santistas e o Primas e Bordões. Necessariamente não estou falando – nem ele – deste Primas e Bordões de hoje, muito menos do Chorões Santistas. Em épocas passadas existiam os Choros Carnavalescos – blocos de chorões que desfilavam durante o reinado de Momo. Porém não eram conjuntos regionais, forma que vieram adotar bem mais tarde, com número de componentes reduzido – normalmente seis integrantes – e com instrumentos característicos (flauta, violão, cavaquinho, bandolim e pandeiro).
A postura e a formação dos conjuntos de choro, adquiridas a partir da década de 30, atualmente, difere – como se constata – daquela adotada anteriormente. Feito o registro, a título ilustrativo, o Conjunto Primas e Bordões teve como líder Walter Caetano, o Walter do bandolim, desde 1976, quando foi criado nas dependências do Clube Sírio Libanês, numa daquelas serestas que ali se realizavam, a beira da piscina.
O conjunto teve extraordinário destaque pois acompanhou artistas consagrados como Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo, Déo Rian, Caçulinha, Orlando Silva, Gilberto Alves, Ângela Maria, Ademilde Fonseca, Francisco Egídio, Altemar Dutra, Carlos Poyares, Jamelão, Evaldo Gouveia e tantos outros, além de participações em shows no Rio de Janeiro ao lado de Horondino Silva, o Dino 7 cordas e Rafael Rabello e em São Paulo com Isaías e chorões e Evandro e seu regional. E a performance do grupo não para por aqui, visto que também se apresentou em cidades do interior do estado acompanhando Silvio Caldas e Carlos Galhardo a apresentações em emissoras de rádio e TV da baixada. Registre-se também aparições nos programas “Almoço com as estrelas”, na extinta TV Tupi de São Paulo, sob o comando de Ayrton e Lolita Rodrigues e “Som Brasil” na TV Globo, na época sob a batuta de Rolando Boldrin. Por seis meses consecutivos o grupo apresentou-se ao lado de Francisco Petrônio na TV Bandeirantes, bem como no Programa “Alegria do Choro”, apresentado por Júlio Lerner na TV Cultura. Sem dúvida, um currículo invejável de um conjunto musical tipicamente santista, fato esse que nos orgulha sobremaneira.
O Primas e Bordões também foi finalista do Festival Nacional do Choro na TV Bandeirantes e no festival da cidade de Araraquara (SP), escolhido como o melhor conjunto de choro e serestas, em 1981 e 1993, recebendo troféu no Programa Força Maior, incluindo apresentações destacadas com a Camerata Heitor Villa Lobos, sob o comando do Professor Manzione. Participou também de todos os Saraus de Choro e Seresta realizados no Teatro Municipal na década de 80 e de várias homenagens feitas a Waldir Azevedo e Jacob do bandolim.
Durante esses anos todos, vários músicos e cantores destacados passaram pelo conjunto, dentre eles, Horácio, Hugo Fernandes, Mauro, Gentil, Floriano Fernandes, Paulinho “Flecha”, Sperandeo, Moacir Cardoso, Luciano Fonseca, Dorival Paiva Loureiro, Miriam, Valdir Gonçalves, Luna, Peixinho, Orlando Nunes, Edinho, Luiz Borracha e Ernesto. Periodicamente convidado para abrilhantar eventos em diversos clubes e sociedades da baixada, Walter do bandolim com o seu Primas e Bordões, mostrou todo o seu talento em entidades como o Clube Sírio Libanês, Portuários, Associação dos Engenheiros, Santos Futebol Clube, Chorões Santistas e Clube Atlético Santa Cecília.
A finalidade precípua do conjunto sempre foi a de defender com “unhas e dentes” a mais pura tradição da Música Popular Brasileira, notadamente o Choro. Todavia, o regional, com sua versatilidade, também abria espaço para o samba, o pagode, boleros e valsas, tendo, portanto, um repertório bem eclético. Palavras do próprio Walter: “nosso prazer maior é de tocar para os amigos e para todas as pessoas que gostam do estilo do regional, improvisando aqui e ali, não tendo, necessariamente, um local específico para apresentações. Basta que existam criaturas com vontade de ouvir e mais nada. Então, para nós, tocarmos num bar improvisando uma “lenha”, num teatro, na casa de um amigo ou em um clube, é a mesma coisa. Estamos sempre “a postos” para interpretar um samba de Noel, choros de Pixinguinha, de Jacó, de Waldir, ou uma valsa de Galhardo, pois essa é a nossa bandeira”.
Walter nasceu no bairro do Paquetá, na Rua Conselheiro Nébias nº 20. Filho de João Caetano e de Clarinda Teixeira, ainda garoto, estudou no Colégio Docas e, desde então, já andava com seu bandolim pra lá e pra cá, por influência de seu irmão, José Caetano, que também tocava o instrumento. Adolescente, com quinze anos de idade e músico amador, participou do programa de calouros “A Onda do Riso”, na PR-G5, Rádio Atlântica de Santos, supervisionado por Corrêa Junior. Posteriormente, a convite do ex-prefeito municipal José Gomes, passou à Rádio Cacique, a esta altura, já com seu conjunto regional. Já se percebia a notória a influência recebida do mestre Jacó do bandolim de quem sempre foi admirador.
Em 1964, Walter esteve na residência de Jacó, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro e este ofertou-lhe um bandolim em miniatura que guarda até hoje com muito carinho. Possui vasto material sobre MPB, sobretudo no que diz respeito a seu instrumento. São fotos, recortes de revistas e jornais, fitas, vídeos, discos, enfim, um acervo magnífico.
Não se destaca somente por ser exímio instrumentista, mas também como compositor. São de sua autoria os choros “Cobra de farmácia”, “O sorriso da Rose” (gravado no CD feito em homenagem aos 450 anos de Santos e que fez em homenagem à sua filha Rosemary Cortez, nossa colaboradora), “Som brasileiro”, “No tempo do Meno”, “Tua ausência”, “Nem choro nem vela” e “Compadre é para essas coisas”, que compôs para o pandeirista Luna, seu compadre. Segundo Walter, o nome do choro nasceu de uma frase dita pelo Floriano Fernandes, certa ocasião, após uma apresentação do conjunto. Luna, como de costume, carregava os instrumentos e reclamava muito, pois a “tralha” era grande. No que Floriano imediatamente rebateu: “compadre é para essas coisas”! Este foi o fato que originou a composição.
Muita gente teve a sorte de acompanhar Walter nas rodas de choro onde se reuniam os músicos, notadamente nas “lenhas”, onde era muito gostoso, pois não havia maiores compromissos, ou seja, valia a improvisação e extrema boa-vontade, misturadas com uma boa dose de talento e sensibilidade musical, e a coisa fluía naturalmente. Todavia, como todo perfeccionista, Walter não admitia erros. Portanto, mesmo durante a lenha todos estavam atentos para não “atravessar” o ritmo nem acelerar o andamento.
Era fundamental a educação musical, principalmente dos percussionistas, pois sua grande virtude era a suavidade com que “batiam” em seus instrumentos.
Palhetada segura, inconfundível, emitindo notas limpas, aliás, característica marcante do virtuose. E assim ouvíamos na sua interpretação personalíssima, grandes clássicos do nosso cancioneiro chorão, em sua maioria, com a marca registrada do grande mestre Jacó do Bandolim.
Walter, na época, já estava aposentado da Cia Docas de Santos, ocasião em que resolveu encerrar suas atividades. Porém, continuou sua atividade musical com o conjunto “Primas e Bordões”. Este mesmo Primas e Bordões que continua em atividade até hoje, tendo na sua formação atual Toledo (flauta e sax), Mauro (violão 7 cordas) e Edinho (pandeiro) dentre outros maravilhosos músicos de nossa região. Mas o destino é implacável e Walter já não está mais entre nós. Faleceu em 18 de maio de 2008, mas ficará para sempre o legado do talento de grande músico e o trabalho do consagrado compositor.
MARCELLO LARANJA – Clube do Choro de Santos.
Olá,estive lendo essa matéria e notei a falta de um nome na lista dos músicos que tocaram no Primas e Bordões durante muitos anos entre as décadas de 70 e 90. Era o meu pai Carlos Morelli “Carlinhos do acordeon” que inclusive escreveu a mão vários choros do Valter Caetano.