Neste ano de 2011, o grande compositor Nélson Cavaquinho completaria 100 anos. Autor de grandes clássicos da Música Popular Brasileira, é considerado, por muitos, o “pai do samba triste”. Mas, os que o conheceram mais de perto, quer por serem seus parceiros, quer por terem se dedicado a interpretar suas obras, chegaram a compará-lo a um hippie, um homem que era muito simples e quase infantil em determinados aspectos, mas, ao mesmo tempo, um ser de comportamento libertário, e muito intuitivo, sem compromissos com as regras sociais que os demais mortais seguimos .De seu violão bruto surgiam melodias dignas de Tom Jobim, como afirma seu parceiro Eduardo Gudin. Beth Carvalho, que em 2001 lhe dedicou um álbum inteiro , o considera “ o maior compositor do mundo” e “o Nélson Rodrigues da música”, por viver e falar de assuntos muito trágicos sem nunca cair no ridículo. E era, ao mesmo tempo, “uma pessoa engraçadíssima”.
Nélson Cavaquinho marcou sua obra pelo seu estilo de vida, vagando por lugares decadentes do Rio de Janeiro, e em botecos freqüentados por malandros e vagabundos, com quem dividia, além da bebida, sua música e solidão. E sua música nasce dessa contradição, captando a beleza nesse conjunto estranho e marginal.
Embora sua vastíssima obra já fosse reconhecida desde os anos 1940, sobretudo nas vozes de Cyro Monteiro de Dalva de Oliveira, Nelson só passou mesmo a ser conhecido pelo grande público a partir de dois grandes impulsos recebidos, o primeiro, na década de 1960, com as gravações de Nara Leão e o segundo, com as de Beth Carvalho, a partir de 1973.
Pois bem, por um desses acasos da vida, tive a oportunidade de conhecer de perto essa figura fundamental da MPB e constatar muito do que dizem seus parceiros e intérpretes. Estando em período de trabalho e estudos no Rio de Janeiro, aluguei um apartamento na Av.Siqueira Campos, em Copacabana. No térreo do prédio funcionava uma famosa Adega, onde se reuniam boêmios, músicos e artistas, pois, em frente, estava o famoso Teatro Opinião, palco de eventos memoráveis da cultura nacional, numa época brava de nossa história.
Todas as segundas-feiras, em meados da década de 1970, no Teatro Opinião, rolava uma roda de samba quente, com grandes bambas como Cartola, Dona Ivone Lara, Ismael Silva (sempre em impecável terno branco e gravata), Xangô da Mangueira, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Elza Soares, o próprio Nélson Cavaquinho e muitos outros. Ao final da apresentação a roda se estendia no barzinho, no fundo da Galeria onde se situava o Teatro. Ali os músicos davam canjas e batiam papo com os fãs (eu, inclusive, claro), e Nelson era um dos mais requisitados e se sentia muito à vontade fora do palco. Fechado o bar, o barato se deslocava para a Adega em frente e prosseguia na calçada, com os barris servindo de mesa.
Nélson Cavaquinho dedilhava aquele violão surrado e cantava, com aquela voz rouca e personalíssima, suas músicas e de outros, e gostava muito de fazer improvisos, tirando sarro de um ou outro amigo presente. Uma das histórias colecionadas pela Beth Carvalho e que eu cheguei a ouvir, dentre tantas, pela própria boca de Nélson numa dessas rodas, dizia que certa noite ele estava tendo um sonho e nesse sonho ele morreria, naquele dia, às 3h da madrugada. Acordou assustado e eram 15 para as 3 e não teve dúvidas: antecipou o relógio para meia-noite e enganou a “malandra”.
É isso, ele era realmente excepcional e, além do talento nato, era um ser humano cordial e engraçado, atrás daquela aparência melancólica e até, às vezes, austera.
As noitadas acabavam quando algum amigo o levava embora, em geral manguaçado.
Tive o privilégio de poder participar desses momentos, por seis curtos meses, todas as segundas-feiras. O duro era levantar nas terças para enfrentar o batente !!
Abraços, Zé do Camarim …!