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DE BONDE, REBOQUE E CAMARÃO.

bondinhoNesta manhã, de brisa do mar, sei de mim na memória do bonde, reboque e camarão do trinta e sete.
Acordei com o poeta do mar de costas para o mar
Com o estivador de costas para o cais
Com o marinheiro de costas para o navio
E com presépios em noites de temporal
Lembrei sim das águas pesadas, de março, deslizando pelo morro abaixo. Pesadelo mortal.
Derradeira memória das manhãs de outono com a estrela Dalva, vespertina estrela de todos os outonos.
Como os ipês amarelos que florescem no morro em confusão harmoniosa e fraterna com buritis, oitis e bambuzal saliente.
Não sei se nos outonos ou nas primaveras de todos os anos, de todos os tempos.    
Trouxe comigo da memória, carrapichos emaranhados na roupa, dos terrenos baldios na catação de capiá transformados em terços pra mãe e disputar com os vagalumes as noites escuras sem lua.
No fundo do peito se guardam a sete chaves os pêssegos do jardim do pai e que alimentavam pelas manhãs ou nos fins de tarde os sabiás, sanhaços, tiés fogo e os alvoroçados e barulhentos biquinhos de lacre.
Trouxe comigo também bem guardado no peito, antigas batucadas com adufes e pandeiros e violas das Folias de Reis e finas cantigas seresteiras nas madrugadas nem tão madrugadas assim.
Hoje cedo, na memória do bonde trinta e sete, nos trilhos do canal 1, lentamente que era lentamente a vida fraterna.
Na Rua Augusto Severo que o bonde de ponto final, pulava que pulava na vitrine da Ferreira de Souza dos sonhos do menino sonhador.
Como disse o poeta que mal há atravessar a Praça Mauá durante a festa das greves dos estivadores, doqueiros, motorneiros e cobradores nos reclamos por respeito e por melhores condições de trabalho, por justiça social.
Pular do bonde andando, pegar o bonde andando em estranhas e perigosas aventuras, malabaristas em saltos ornamentais, procurar livros nas livrarias muitas, nos sebos, ouvir muitos discos no Seu Pepe que guardava canções no peito e dos homens de terno e gravata e chapéu e guarda-chuva.
Inda sonhava com a trabalheira do pai de madrugada de todos os dias fazendo verdadeiros milagres rodando o jornal na velha rotativa de muitos jornais rodados que era mágica e o próprio encanto e depois lido pela vó no café da manhã de tantas histórias contadas.
Conto de mim e de memória do bonde trinta e sete que a mãe gostava mesmo era de ir pra cidade, de tomar sorvete nas Lojas Americanas subindo de escada rolante que era novidade viagem de uma vez por mês quando o pai ia ao jornal receber o parco e fugaz salário.
Contava que contava o tempo e os anos passados pelos carnavais e natais de todos os anos que assim valia a vida de fraternidade e solidários vizinhos de porta com porta.
Conto ainda de mim e das memórias da bola de couro rolando pela terra batida, ouvindo os discos de Dalva de Oliveira e Dorival Caymmi na casa dos vizinhos queridos, Seu Euclides e Dona Líbia, pacientes que eram com a curiosidade impertinente do menino.
Muito mais que tudo isso o cigarro de maço amarelo que a vó, cúmplice, dava para o neto querido e que guardava bitucas no pijama, arrastando as chinelas de cara de gato e que contava antigas histórias dos antepassados de vida de escravidão.
Meu velho camarada, sei de mim muito bem e muito mais.

Itinerário do Bonde Nº 37 – Marapé
Ida – Rua Augusto Severo, Praça Barão do Rio Branco, Praça da República, Rua Senador Feijó, Praça José Bonifácio, Rua Senador Feijó, Rua Rangel Pestana, Rua Antonio Bento, Av. Senador Pinheiro Machado, Balão do Marapé (Rua João Caetano).
Volta – Balão do Marapé, Av. Senador Pinheiro Machado, R. Rangel Pestana, Rua Senador Feijó, Praça José Bonifácio, R. Amador Bueno, Rua Itororó, Rua General Câmara, Rua Augusto Severo.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.


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