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VELHOS CAMARADAS

Camaradas“Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.”
(Fernando Pessoa)

Três velhos camaradas. Três velhos amigos de destino igual que se reuniam todos os dias, no mesmo lugar e no mesmo horário, desde há muito. E, ali, consertavam o mundo, consertavam a vida de todos e consertavam até o futebol brasileiro, além, é claro, de resolver todos os problemas do País, do mundo, quiçá do universo que, afinal, amigo que é amigo é pra essas coisas. Em questão de minutos até o clima da terra resolvido estava. Apostavam todos os dias nas chapas dos carros que se aproximavam. Final impar ou par. O perdedor pagava o esperado café de todas as horas.                  
Parceiros inseparáveis de todos os dias e de todas as horas. Um sabia sempre da vida dos outros e os outros sabiam sempre da vida de um. Dos três, apenas um vivia sozinho e tinha como família apenas a solidão. Valzinho, aposentado por invalidez, ganhava um salário miserável, tal qual a vida miserável que levava.
Morava num impossível viver cortiço daqueles prédios antigos e podres que ainda teimam em sobreviver no podre centro da cidade, que de histórico só tem a miséria e a pobreza.
Guardava no peito uma tosse crônica alimentada pela umidade, pelo mofo do pequeno quarto que dormia e pelo raro feijão com arroz.
Para os velhos camaradas nunca se queixava, apenas, às vezes, reclamava que não existia, pois invisível, talvez estivesse morto e morto tocava a vida.
Do tempo que passa, para surpresa dos velhos amigos, Cabeção e Zuza, certo dia, com um sorriso contagiante, Valzinho, eufórico e aparentando uma felicidade quase bêbada, mostra com certo orgulho até, cinco cartas que o carteiro foi entregar na tarde do dia anterior e que de tão feliz que ficou, nem dormiu e muito menos conseguiu abrir as cartas se perguntando quem poderia ter escrito uma carta para um morto em vida.
Valzinho, agora junto dos velhos amigos, é que teve coragem e a curiosidade de ver o remetente e constatou que, nem ele e nem os amigos, conheciam aqueles nomes.
A primeira carta que conseguiu abrir, pois estava tremendo mais que vara verde, veio de longe, de muito longe mesmo. A carta veio da cidade de Santa Helena de Goiás e nela o remetente perguntava intimamente como estavam as coisas, como estava a vida e falava sobre situações corriqueiras e com detalhes de quem o conhecia já há muito tempo.
A segunda carta falava também de assuntos corriqueiros e também da família dele. As três últimas cartas, da mesma maneira, falava dele com certa intimidade como se participasse da vida e dos problemas que padecia, além de comentar sobre sua imensa tristeza.
A carta, porém, que chamou mais atenção, dele e dos amigos, tinha como remetente Ana Lúcia e era daqui de Santos mesmo, porém sem endereço.
Na carta, a remetente, se dizia morena, de olhos verdes e que há muito era apaixonada por ele e tímida, amava de longe platônico.
Dizia ainda a misteriosa remetente, Ana Lúcia, que o acompanhava no dia a dia, pois passava por ali, na praça, todos os dias e ficava de longe só observando.
E foi assim que o quase morto Valzinho, de uma hora pra outra, se transformou. Um novo homem surgiu, garantiu o novo Valzinho, agora com novas esperanças. Cheio de coragem pediu aos amigos, roupas novas e um novo sapato, pois, afinal, encontrou alguém que percebia sua presença mesmo que não soubesse quem era.
A partir desse dia, começou a chegar mais cedo na praça, penteado, dentes escovados, banho tomado e todo almofadinha, fazendo, inclusive, caras e bocas e pose de galã, sabendo, pois, que, uma morena de olhos verdes passava por ali só para olhar pra ele.
E assim seguiu a vida por muito tempo dando um trabalho danado para os queridos amigos Cabeção e Zuza inventar histórias para escrever as cartas tão esperadas.

Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte do Bloco do Boi, integrante do grupo de Choro Regional Varandas, desde sempre toca cavaquinho e solta a voz na roda de Choro e Samba do tradicional Ouro Verde e Diretor do Clube do Choro.


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