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APITO FINAL DE TRINTA E OITO

apito

Já disse alguém que o Brasil ficava vazio nas tardes de domingo. Ficava. Aqui era o país do futebol, era o país dos campos de várzea, do tempo em que cada campo tinha uns seis carneiros para aparar o gramado.
E gritava, a plenos pulmões, o velho e sábio Papa, treinando os meninos da Burrinha, para o zagueiro que entrava de primeira e invariavelmente tomava um drible do centro-avante:
- “Pára na frente dele, ô filha da puta, seu viado, não entra de primeira…”
Ou ainda, quando vinha um garoto pra treinar cheio de conversa fiada e aquele andar de pato ou de quem rema no seco:
- “Ô tio, eu brinco em todas”
O velho Papa respondia com aquela educação de sempre:
- “Então vai brincar em outro lugar que aqui não é lugar de brincadeira não, e tio é a puta que o pariu!”
O antigo treinador advertia seus pupilos:
- “Rapaziada, não canta o jogo que o adversário marca de ouvido!”
O esperto Tuca, técnico do Yale, sempre inventava alguma novidade pra comandar o seu time, porém, nunca dava certo, é claro.                       
Quando alguém falava nas dificuldades que os jogadores brasileiros tinham pra jogar na altitude, na Bolívia ou sei lá onde, ele explodia:
-“Isso é viadagem, jogador profissional é cheio de merda, porra o Juventude joga todo domingo na Nova Cintra, lá em cima, no morro, e ninguém reclama de porra nenhuma e muito menos de falta de ar. Que isso é coisa de viado!”
Não tinha erro, em alguns clássicos da várzea, era porrada mesmo, era pau puro de dar medo, porém não passava disso.
O que a molecada gostava mesmo era de ver o Daniel Feijoada apitando os jogos. O duro era encontrar alguém com coragem suficiente para apitar um jogo de várzea, pois, sempre acabava apanhando das torcidas, como se pudesse roubar para os dois times. Com o Daniel Feijoada, porém, a parada era outra e, quem se atrevia a encarar o homem?
Estivador destemido, Daniel era o maioral na pernada. Nas festas da padroeira no Monte Serrat não tinha que derrubasse o negrão, nem os bambambans de São Paulo. O Negão era o bom. Na tiririca, na briga de rua e na conversa nas rodas da malandragem, não tinha bom pra ele.
Sambista de primeira, passista, partideiro e craque no improviso, Daniel fazia pequenos shows com sua mini escola de samba. Grande conhecedor de samba participou ainda do filme Domingo no Parque, baseado na musica de Gilberto Gil, rodado em parte nas praias de Santos, junto com Seu Bahia, Mestre Bispo e Mestre Teixeira, grandes capoeiristas. Mestre Bispo foi o mestre do decantado Mestre Sombra, atualmente o mestre de capoeira mais respeitado do País.
Voltando ao grande Daniel Feijoada, é bom lembrar também, que o homem só não foi cidadão samba em Santos, porque na época, ele não era bem visto pelas autoridades que mandavam no carnaval santista e naqueles tempos obscuros o Daniel era considerado um cidadão, digamos, atrevido, sabe aquele tipo de negro com alma negra, que não conhece seu lugar, pois esse era o Daniel Feijoada.
Todos sabiam do carinho que o Feijoada tinha pelo Brasil F.C., clube do Marapé, mas essa admiração terminava se fosse, por acaso, escolhido para apitar um jogo do time marapeano. Não tinha nem disse me disse, nem tamos aí. O negão era imparcial mesmo. Quem viu o homem apitar, sabe que ele, além de tudo, conhecia as regras do jogo de futebol. Ah! é bom lembrar que não tinha bandeirinha, o assunto e responsabilidade era apenas do juiz.
É isso, precisava ser duro na queda e ter muita coragem pra encarar tanto fanatismo que não tinha maior nos clubes de várzea. Pois é, foi apitando um jogo do Brasil, aliás, muito a contra gosto, numa final de uma daquelas memoráveis Prova de Honra de um festival lá pelas bandas do Macuco que aconteceu o inusitado, o inesperado.
Jogo duro, duríssimo, pois sabem todos que naqueles tempos em cada esquina tinha uma dúzia de geniais craques de futebol e os jogos eram espetaculares. Voltando ao jogo. A bola rolando tranqüila, jogo disputado. Daniel Feijoada tomando conta do jogo apita aqui, apita ali e a molecada tocando a bola com leveza. Termina o primeiro tempo empatado. Recomeça o jogo que vai na mesma toada. Lá pelos trinta e nove, quarenta minutos de jogo o Brasil faz um a zero. Aí, meu amigo, o jogo pegou fogo feio, aquela pressão da torcida. Afinal a partida era no campo do adversário e Feijoada ali toureando a turma. Último minuto de jogo, escanteio contra o Brasil, Daniel no meio da área não consegue esconder o amor pelo Brasil F.C.: saca o revolver da cintura e apita o final do jogo com um tiro para o alto.
 
Renê Rivaldo Ruas é escritor. Foi passista da Império do Samba, baliza da Embaixada de Santa Tereza, fez parte da bateria do Bloco do Boi, foi integrante do grupo de choro Regional Varandas, formado por jovens amantes do Choro. Desde 1986 toca cavaquinho e solta a voz na roda de samba e choro do tradicional Ouro Verde e diretor do Clube do Choro.


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