Maestro Gilson Peranzzetta
Marcello
Gilson, como é sabido por todos, você nasceu no seio de uma família de músicos e começou tocando piano e acordeon. Com que idade você começou seus estudos e onde você estudou música?
GILSON
Eu comecei a estudar com nove para dez anos. Eu sou lá de Brás de Pina, subúrbio do Rio de Janeiro. Minha mãe tocava bandolim e tem uma história bem interessante que, ela tocava bandolim, meu avô tocava violão e cantava, tinha aqueles saraus aos sábados lá em casa e minha mãe, depois que ela nos colocou para estudar música, eu e meu irmão, ela foi aprendendo música com as aulas dos filhos, e começou a ensinar piano, sem tocar piano, e vários alunos que estudaram com ela, que entraram para a Escola de Música, para a Escola Nacional, na época da UERJ, que hoje é UERJ, e estudaram com minha mãe, fizeram a prova e passaram, e minha mãe ensinava pela partitura mas ela não tocava piano, era uma coisa muito estranha, não sei como ela conseguia fazer isso. Então, o primeiro instrumento foi o acordeon, por que na época era um instrumento que estava em moda, Mário Mascarenhas e um outro professor que estava muito em moda e meu pai era operário, na época era muito difícil ele poder comprar um piano. Então, um ano e pouco depois, quase dois anos depois é que ele conseguiu comprar o piano e nós passamos para o piano, começamos a estudar piano. Primeiro com uma professora do bairro, dona Zenete, depois uma outra professora que era num bairro pra frente, na Penha, dona Odete Costa, e aí fiz concurso para a Escola de Música, Escola Nacional, passei, estudei três anos na Escola Nacional depois fui para o Conservatório e isso tudo fazendo baile, meu tio era cantor, cantava na noite e o outro era baterista, e fazendo baile, estudando música, mas sempre ligado na Música Popular Brasileira, sempre ligado. Porque eu tenho em mente uma coisa, não sei se vocês vão concordar ou não. Eu nunca soube, por exemplo, que Mozart sabia que a música dele era música erudita. Ele fazia música, as pessoas dançavam, tinham os minuetos, e aí, com o passar do tempo começaram a qualificar, música erudita, música popular. Eu acho que tudo é música, música boa, música ruim, tem música boa na música chamada popular e na música erudita e tem ruim na erudita e na popular. Então, não acredito nessa coisa, eu acho que tudo é música, não é?
Marcello
Tudo é arte, tudo é talento!
GILSON
Mas a música, dentre as artes, é a que faz você conviver com as suas limitações, porque se você quer ser um grande violonista, intérprete, você dificilmente será um grande regente; se você quer ser um grande regente, dificilmente você será um grande compositor. É claro que tem as exceções; mas no que você se especializa numa coisa, uma outra coisa vai perder, né, você perde alguma coisa por se especializar em outra área. Então, antes de eu vir para cá, tive uma entrevista no Rio. Me perguntaram o que era música. O que é música pra você? Eu acho que ele estava esperando que eu dissesse que era...
Marcello
A união do ritmo, da harmonia e da melodia! (risos)
GILSON
E eu disse pra ele o seguinte: olha, a música é minha religião, o palco é minha igreja e o piano é o altar onde, humildemente, faço as minhas orações. Então eu vejo a música assim, como uma religião e a forma mais rápida de você chegar perto do patrocinador.
Marcello
É um sacerdócio!
GILSON
Eu acho, eu acho.
Marcello
E você está completando 50 anos de carreira, aliás, uma belíssima trajetória, e como é que você se sente agora, o teu momento atual, você, profissionalmente, já se sente realizado ou você acha que ainda tem coisa para fazer, e você fatalmente irá fazer.
GILSON
Ah! com certeza. Olha, eu trabalhei...nós tocamos juntos...quando cheguei da Europa...estudei três anos em Barcelona. Quando eu voltei - eu fiquei de 71 a 74 - cheguei em março, no final de março, comecei a tocar com o Ivan Lins, de 74 pra 75, fui até 85 no Rock in Rio. Parei em 85. De lá pra cá eu fiquei fazendo minha carreira solo e gravando meus discos – estou no 38º. – de 85 pra cá. Eu acho que ainda tenho muita coisa pra fazer, sabe. Porque eu não sei se todo mundo é assim, eu não me sinto com 61 anos, não me sinto. Eu me sinto mentalmente produtivo e jovem pra poder fazer mais coisas.
Marcello
E agora com a experiência, melhor ainda não?
GILSON
Melhor ainda, melhor ainda, com certeza.
Marcello
Em fevereiro do ano 2000 você se apresentou no Clube do Choro de Brasília.
GILSON
Isso.
Marcello
E aí, como é que foi essa experiência, porque é sabido que o Clube do Choro de Brasília tem uma baita estrutura, tem mais de 30 anos de existência e você está aqui dentro da futura sede do Clube do Choro de Santos, que está ainda no início, está começando; como foi essa experiência, e quem sabe você virá daqui há um tempo já com a estrutura toda montada e você dirá: “Eu fui ao Clube do Choro de Santos”, vamos dizer assim, com a mesma envergadura que você disse “eu fui ao Clube do Choro de Brasília”, porque eu acho que é um dos palcos mais cobiçados para se tocar no Brasil hoje.
GILSON
Mas é verdade. A primeira vez que eu fui, toquei com os músicos da casa. Fui solo, piano.
Marcello
Você tocou com o Reco e o Choro Livre?
GILSON
Com o Choro Livre sim. Era um sete cordas que não está tocando mais...
Marcello
O Alencar?
GILSON
O Alencar. Não está mais lá. O ritmista, cavaquinista que tem um estúdio de gravação...
Marcello
Aquele gordinho?
GILSON
Gordinho, é. É isso aí. E aí eu fui pra lá um dia antes, aí ensaiamos, demos uma outra passada no dia seguinte e fizemos o show os três dias lá. Foi uma experiência assim para mim maravilhosa, porque eu toco choro e tal, mas não é uma coisa do meu dia-a-dia. Então cara, você poder descobrir coisas assim maravilhosas como eu descobri na obra do Cartola quando eu fui mexer com a obra dele, então eu descobri coisas dessa vez que toquei em Brasília. Foi lá que surgiu a idéia de fazer o meu disco de choros, comecei a compor os quatorze choros pra poder fazer o CD. Foi uma experiência maravilhosa. Agora, eles têm uma organização incrível. A estrutura é muito boa.
Marcello
Invejável o que eles conseguiram lá.
GILSON
É. Mas, como eu disse uma vez que eu ganhei o Prêmio Sharp, até o Tom Jobim passou pela porta do camarim lá no Municipal e falou assim: “Pô Gilson, aquela frase que você disse, eu queria ela pra mim”. Eu falei: “leva e diz que é tua” (risos). Porque é o seguinte: leva anos pra gente virar uma estrela da noite para o dia. Você passa sua vida inteira se dedicando ao seu instrumento, a compor, a tocar. Um belo dia você grava alguma coisa que vira sucesso. “De onde apareceu esse cara, da noite para o dia, que fez sucesso”, Não sabe o que você já vem fazendo há anos. Então, leva anos pra você virar estrela da noite para o dia.
Marcello
E essa estrela pode cair no dia seguinte, em cinco minutos, dependendo da conduta, da postura da pessoa, pode-se destruir isso em questão de minutos. Uma carreira que você levou anos para construir, por qualquer deslize, por qualquer problema, pode levar o cara ao fundo do poço.
GILSON
Porque o sucesso inebria não é.
Marcello
E precisa tomar cuidado com ele.
GILSON
Você pode achar que é maior que a sua música, que a sua obra, e aí começa a confusão, não é. Aí é que começa a coisa ficar confusa.
Marcello
Agora eu vou dar uma guinada de 180 graus. Queria ouvir a sua opinião a respeito. Nós estamos dentro desse contexto que está hoje na Música Brasileira, que na minha ótica já existe há vinte e cinco anos, a partir de 1980. A gente dá como ponto de referência as mortes de Cartola e Vinicius de Moraes. Nós estamos numa entressafra muito grande em termos de mídia e nesses anos todos, principalmente agora, nós temos uma safra muito boa de cantoras. Então eu quero saber na sua opinião, hoje, quais são as cantoras que mais te impressionam ou já te impressionaram, qual é a cantora ou as cantoras que você tem predileção, que você sairia de sua casa e diria: eu vou assistir a um show dela.
GILSON
Olha, tem uma cantora que eu sou assim, apaixonado por ela, que é Alaíde Costa.
Marcello
Magnífica né? É uma voz personalíssima.
GILSON
Ela tem 72 anos. Não sei nem se ela vai gostar de eu falar isso (risos). Mas eu fiz um disco com ela agora que se chama “TUDO QUE O TEMPO ME DEIXOU” que é uma música minha com o Paulinho Cesar Pinheiro. E aí eu apresentei esse disco numa gravadora no Rio. E a resposta que eu tive foi a seguinte: “Gilson ela está cantando muito mal, ela não ta afinando”. Eu não entendi nada, porque não era verdade. Aí eu falei para essa pessoa o seguinte: “eu não deixei o disco contigo, com a gravadora, pra que você me desse nota no disco, deixei o disco pra você incluir no catálogo da gravadora”. Porque essa pessoa, como outros artistas, não tem clone. “Esse aqui é o novo Radamés”. É mentira. “É o novo Waldir Azevedo”, Jacob. Essas pessoas não têm cópia. Então eu falei pra ela isso: “olha essa artista ela não tem cópia, não tem clone, essa pessoa em qualquer lugar que você oferecer vão aceitar com o maior respeito, com o maior carinho”. Bom, não aceitou. Eu consegui uma gravadora em São Paulo que é a Lua Discos. Ela ficou com o disco da Alaíde Costa. Teve o Prêmio Petrobras no Rio e Alaíde ganhou como a melhor cantora. E ela disse: “Gilson o que me deu mais alegria foi quando eu recebi o prêmio, que eu saí do palco para ir para a minha mesa, eu passei em frente a mesa deles”, que era a mesa da gravadora que não aceitou o disco. E eles se levantaram para dar os parabéns, falar com ela...
Marcello
E aquela altura já arrependidos, não é?
GILSON
Já arrependidos, lógico. Porque poderia ser.
Marcello
Lógico, eles poderiam ter feito na hora em que você levou!
GILSON
Mas não, não quiseram porque no Brasil tem uma coisa que eu acho muito triste. Quando você é muito jovem, não te aceitam porque você não tem experiência; quando você tem toda a experiência do mundo, você é velho.
Marcello
É verdade.
GILSON
Aí não querem por que...
Marcello
Não serve mais!
GILSON:...não serve mais. Mas na Europa e nos Estados Unidos não funciona assim. Os músicos...eu conheci um guitarrista lá em Los Angeles, trabalhou muito tempo com a Tijuana, com Sérgio Mendes, circuito de jazz também e esse cara vive assim muito bem com o que ele ganha de direitos conexos do tempo em que ele trabalho com Sérgio Mendes e com a Tijuana Brass. Dá aula, faz concertos e aqui no Brasil você tem que...
Marcello
O cara não tem valor, não é reconhecido...
GILSON
Não é reconhecido porque existe um filme que passa, ainda mais para nós, pra música instrumental, que é uma coisa muito triste, que é o seguinte: “Eu não ouvi e não gostei. Você já ouviu lá o grupo de choro de Santos? Não! Eles vão tocar dia tal, em tal lugar, você vai? Ah! não vou não. Porque? Nunca ouvi”. Quer dizer, não ouvi e não gostei. Então vá pra saber como é.
Marcello
Faça uma análise, trace um perfil.
GILSON
A pessoa vai e se empolga, gosta do que vê. Então, o brasileiro não tem acesso à cultura, não tem acesso às coisas de raiz, principalmente.
Marcello
Mas esse eu acho um problema nosso, é cultural isso né?
GILSON
É cultural.
Marcello
É nosso, infelizmente.
GILSON
Com certeza que é. No Rio e aqui em Santos acho que também...
Marcello
Em todo o lugar.
GILSON:
...a rapaziada ela está se voltando para essa coisa do choro, pra Música Brasileira, brasileira mesmo. Então eu acho que isso é que é importante. O Sivuca uma vez me falou uma coisa que eu nunca mais esqueci. O seguinte: “se a Música Brasileira tivesse 1% da mídia do futebol, nós estaríamos num patamar muito diferente”. Então eu acho que isso só depende de...uma rede de televisão que tem uma novela diária e coloca uma música em inglês, diariamente. Se ao invés dessa música eles colocassem Música Brasileira, cantada ou orquestrada ou interpretada por um bom instrumentista, o povo teria acesso a isso tudo no diário, invés de ficar tentando imitar o cara cantar em inglês sem saber o que está falando...
Marcello
Sem saber o que está falando, exatamente...
GILSON
Então ouviríamos, investiríamos na raiz, na coisa brasileira. Mas eles não fazem isso e a gente sabe bem por que. Mas eu acho que tá mudando. Não tem jeito. A última vez que eu fui lá em Los Angeles pra gravação de músicas com Quincy (*), eu, Ivan Lins e tal, ele disse uma coisa que depois eu falei para o Ivan: Ivan fica prestando a atenção nisso. “Ele disse: a música, a melodia americana acabou. A música nos Estados Unidos, a melodia acabou. Nós estamos virando o foco para o Brasil que um celeiro inesgotável de compositores e instrumentistas”. Não é a toa que o Quincy (*) tem vindo aqui não...(*) Gilson se refere ao maestro Quincy Jones
Marcello
Elogia os músicos brasileiros pra caramba...
GILSON:
...arroz de festa, tá sempre aí, não é a toa. Sei que ele andou rodando por vários lugares com um gravadorzinho na mão. Gravando tudo, colhendo tudo...O Chick Corea quando esteve aqui há uns quatro, cinco anos atrás, um ano depois saiu um disco que chama Three Quartet que é...a base é toda brasileira...você ouve parece que são brasileiros tocando, sul americanos. Quer dizer, eles estão bebendo dessa fonte e o brasileiro como não tem acesso as suas coisas, fica tentando tocar igual a eles...
Marcello
Sempre querendo imitar...
GILSON
Por melhor que se faça, vai tocar um tema de jazz, você vai tocar bem, mas não é o teu alicerce, tua raiz, não é a tua praia...
Marcello
Principalmente isso, não é a tua raiz, não é a tua origem.
GILSON
Então você nunca...O Toots Thielman quando veio ao Brasil, não agora, ele está lá pra fazer um show...uns dois ou três anos atrás, ele tinha encontrado com o Ivan em Los Angeles e ficou maravilhado com as composições do Ivan e com a música brasileira que o Ivan mostrou pra ele. Aí ele foi assistir o Ivan no Canecão. Eu já não estava mais com o Ivan nessa época, eu já não era mais o produtor dos discos e as gravadoras têm uma mania de por o dedo no trabalho dos artistas. Botaram o dedo nessa época no trabalho do Ivan e o Ivan começou a “popiar” (vem de pop), começou a...esse negócio mercadológico entrar pra música mais pop e tal, e foi assistir. Na saída ele falou comigo assim: “Mas esse não é o Ivan que eu vi lá em Los Angeles. Eu gosto mais dele fazendo o que ele sabe fazer realmente, porque esse tipo de música lá nos Estados Unidos fazem melhor”. Eu digo:” você tem toda a razão, não é, tem toda a razão, porque por mais que você queira imitar, você...” era uma brincadeira que tinha no Rio, com Martinho da Vila e o Nadinho. Você vai ser sempre um Nadinho da Ilha, você nunca vai ser um Martinho da Vila. O cara é o original, dali tudo vai ser cópia, que é o que eu estava falando antes. Ah! Esse aqui é o novo Jacob!
Marcello
Conversa.
GILSON
Não. Ele toca maravilhosamente bem, é um grande músico, mas o Jacob não tem cópia, não tem clone. Radamés, essa rapaziada não tem clone, isso é definitivo. Então eu acho que, não custa nada fazer como fazem...no meu tempo de ginásio existia o manossol, aquela coisa do Villa-Lobos. Por que não voltar a música outra vez para o colégio? As bandinhas, formação de né...porque a gente só vai sair dessa crise...eu moro no Rio de Janeiro e estou vivo. Então, eu não sei, tenho que agradecer a Deus todo dia, porque está difícil, cara. Só vamos sair dessa crise com a cultura, com a educação...
Marcello
Sim senhor, cultura e educação.
GILSON
Não é? Então é isso.
Marcello
Ter cultura e educação para poder ter saúde.
GILSON
É lógico. A gente vai pra outro lado. Reformaram o Aeroporto de São Paulo. Custou quatrocentos milhões. Você viu como ficou lindo, Congonhas, né? Uma coisa maravilhosa e as pistas não consertaram. Mas é lindo, é lindo. E a pista, é para sofrer acidente? Quer dizer, quatrocentos milhões. Será que não tinha cem milhões pra botar numa escola? De Fortaleza, a moça que chegou com o noivo, o cara morreu por falta de assistência, lembra, há uns quinze dias atrás.
Marcello
Não foi acudido a tempo.
GILSON
Quer dizer, nada disso fere, essas pessoas não tem emoção...
Marcello
Sensibilidade nenhuma ante essa realidade que é triste pra caramba.
GILSON
Então eu acho que é isso que eu te falo: a música é minha religião, o palco a minha igreja o piano meu altar, como é pra todo mundo que tem um instrumento. Cada dia que eu não boto a mão no meu instrumento ele se afasta uma semana. Eu vi um DVD do (*) antes de ele falecer e ele dizia assim: “quando eu não toco um dia eu sei que eu não estudei; quando eu não toco no segundo, a minha mulher sabe que eu não estudei; quando eu não toco no terceiro dia, o meu empresário sabe que eu não estudei; quando eu não toco no quarto dia, o meu público sabe que eu não estudei”. Então...
Marcello
A cobrança é imediata.
GILSON
Outro dia mesmo começaram...cadê sua esposa? Eu falei: minha namorada, porque eu já vim casado com a música.
Marcello
Ela é que entrou nessa relação (risos). Ela entrou depois na relação (risos).
GILSON
Você vai largar o seu instrumento porque eu não admito! O meu tio passou por isso. Ele cantava na noite no Rio de Janeiro e casou com uma moça que não permitiu mais que ele cantasse. Ele foi um zumbi a vida inteira, um morto vivo. O cara perdeu todo o elã, perdeu tudo. Então essa coisa é dada pelo patrocinador, cara. Então nós somos assim, os escolhidos. E não é a toa, sabe. Eu tenho pra te falar, por exemplo, eu quando tinha dezenove anos levei um tiro no exército. Oito dias de quartel, um rapaz mexeu numa arma (metralhadora) e me acertou o braço. Entrou aqui, eu estava em pé. Entrei no HCE numa lona, passaram dois médicos e disseram assim: “olha, acho que não vai ter jeito não, isso aí é caso de amputação”. Eu falei: pelo amor de Deus, eu tenho dezenove anos, toco piano, estou estudando...aí me levaram para a mesa de cirurgia. O médico virou...o que ia operar e disse assim: “olha, o Gilson eu vou te falar uma coisa, eu vou tentar tudo, eu e meu assistente pra salvar o seu braço, mas eu não quero que você acorde com essa esperança, vai ser difícil”. E nisso eu ouço entrar na sala de cirurgia um médico falando espanhol. Ele era um chileno e falou assim: “já que vocês estão falando de amputação, eu vim para o Brasil pra fazer um congresso de tendões de nylon. Então eu quero que meus alunos assistam pelo...aquele vidro que tem em cima da sala de cirurgia...invés de eu mostrar em vídeo, vou fazer a operação nele com os tendões de nylon e meus alunos assistem e tal...E fez a operação. Esse braço aqui...você vê, estica todo, a mão é reta; esse aqui não estica todo e a mão é pra dentro. Mas eu acho que Deus já deixou na posição porque esse aqui quando põe no teclado tem que ajeitar. Essa não, já está no jeito (risos). Eu não posso fazer plástica porque os tendões ficaram muito a flor da pele, tá vendo, os tendões estão aqui. Então tem que sangrar pra pegar o enxerto. Eu não posso fazer. Então, se eu ia ser amputado e apareceu um cara que eu, três meses depois, meu pai, procuramos esse cara em todos os lugares possíveis e imagináveis. Dentro do HCE ninguém conhecia. Fomos ao Ministério do Exército, ninguém sabia da vinda desse cara para o Brasil, esse cirurgião. O cara desapareceu. Eu não sei quem é. Será que não era um anjo? Meu avô dizia que Deus quando marca é pra não perder de vista. Então o cara...eu acho que por isso eu tenho...o que eu faço com a música é muito pouco pelo que me foi oferecido cara, sabe...
Marcello
Ele é modesto pra caramba (risos).
GILSON
E aí eu fiquei vinte dias sem dormir, porque esse tiro que entrou aqui do lado eu não podia virar a cama. Então eu tinha que ficar deitado reto. Meus rins, eles queimavam, nem doíam mais. Vinte dias, cara, sem dormir. Chegaram a me dar morfina, um ou dois dias, mas o cara falou, olha o estado é muito excitado, ele vai viciar, e não vai acontecer nada. Pararam de me dar morfina, vinte dias depois eu estou lá de madrugada, ai, ai...entra um...o cara fazia servido de limpeza na...um ajudante geral...um auxiliar de enfermagem que limpava coisas...e ele chegou bêbado pra caramba de madrugada cara, sentou do meu lado e falou assim: “Gilson é o seguinte, aí tá todo mundo querendo dormir na enfermaria e você fica com esse ai, ui, ai, ui e aí ninguém dorme cara”. Eu falei: “mas eu estou com dor”. Ele falou: “olha, é o seguinte, tudo que a gente passa na vida está sendo escrito enquanto nós estamos sendo gerados. Então você não tem que ficar com essa história porque Deus sabe muito bem o que está fazendo contigo, está tudo certo”. A partitura está pronta. Foi tudo escrito enquanto você estava sendo gerado. Olha, eu não sei se foi o bafo de cana do cara, ou se foi o papo dele, eu dormi pela primeira vez em vinte dias (risos)...em vinte dias de dor eu dormi cara. Então são essas coisas que eu acho que você tem que ficar prestando a atenção, não é?
Marcello
É mesmo!
GILSON
Então eu acho que quando vocês forem fazer aqui a inauguração, me chama que eu venho pra cá com o maior prazer.
Marcello
Mas você vai vir mesmo, porque agora você já está na história cara, você entrou na história hoje. Você é o primeiro cara que nos visita e está vendo cru ainda. Daqui mais um dois meses, não é gente, eu acho que já deve estar tudo pronto e você vai vir mesmo.
GILSON
Venho sem sacrifício.
ADEMIR
O Clube do Choro já tem cinco anos. E todo o ano a gente traz um convidado, sempre a gente convida um...a gente faz muito shows na cidade...e agora a possibilidade de ter um local próprio...
GILSON
Ah! Com certeza. E vai ser aqui?
Marcello
Aqui. Nós vamos fazer a Escola de Choro.
GILSON
Eu venho pra cá estudar. Eu comecei a estudar clarineta com sessenta anos. Eu tenho sessenta e um. Arruma um professor de clarineta que eu venho pra cá estudar.
Marcello
E coincidentemente até – isso não foi combinado – ele, sem que eu perguntasse, já respondeu três perguntas que eu ia fazer . Já falou da cultura, falou do Quincy Jones...
Então eu vou fazer uma última pergunta a ele, porque eu quero passar a bola, se alguém quiser complementar. Quem é teu grande parceiro, o cara que você fala, esse eu vou sentar e trabalhar com ele, compositor, instrumentista, o cara que você...aquele cara que é teu irmão gêmeo musical. Ou um ou outros, companheiros, parceiros.
GILSON
Essa coisa de citar nomes é complicado. Outro dia num show lá, eu fui falar das pessoas que estavam presentes, Eliana veio falar comigo, estava aí o teu amigo você não falou...
Marcello
Isso é complicado pra caramba.
GILSON
É complicado. Bom, eu tenho um duo com o Mauro Senise há vinte anos. Esse cara é um músico que entendeu a minha música assim, de primeira. Eu levei, quando começamos a ensaiar e começamos a tocar, esse cara é braço direito assim, guerreiro nas coisas de música, nós tocamos juntos, temos três discos, três CDs. Tem o João Cortês que está comigo há quarenta anos, tocamos juntos desde os tempos do baile, do Ivan Lins, do tempo do Modo Livre, Gonzaguinha, nós dividíamos o grupo Modo Livre com o Gonzaguinha e com o Ivan. O João Cortês é parceraço. Também tem o Nelson Hélio que é um grande letrista, parceiro, Paulinho César Pinheiro, o Aldir (Blanc)...
Marcello
“Uns caras que não sabem nada, não é?”
GILSON
Nada!
Marcello
“Tudo tonto..”
GILSON
Tudo maluco (risos). E músicos maravilhosos. Nós não falamos ainda do marido da Herlinha, que foi o cara que me abriu muitas portas, o maestro Luis Roberto, que era uma pessoa assim, maravilhosa. Ele, como eu, pensava também a mesma coisa. Ele nunca foi maior do que a sua própria obra.
Marcello
Isso o Jorge Simas falou quando esteve conosco, que, aliás, foi um negócio engraçadíssimo. Nós fomos buscá-lo na rodoviária, isso foi em março agora. Vieram ele e a mulher. Então batendo um papo, aquela conversa, fomos levá-lo para dar uma volta na praia, e como Herlinha é uma grande fonte de informação e referência para nós, quando nós a conhecemos ela foi literalmente trazida para o Clube do Choro, eu cheguei e falei: “Jorge, você por acaso conheceu o pessoal de Os Cariocas?” Jorge também fez trinta anos de carreira agora. Ele falou: “Marcelo eu conheci. Mas o cara com quem eu mais - lembra, o Ademir é testemunha disso - o cara que eu mais me dei foi o Luis Roberto”. Eu falei: “Pronto! Não foi combinado. Então você vai conhecer a mulher dele”. Quem, a Herlinha? É, a Herlinha. Ela está aqui com a gente já há muitos anos. E ele falou exatamente isso, em outras palavras, ele nunca foi maior...eu não tive o privilégio de conhecê-lo, mas pelo que eu sei, pelo que a gente ouviu, realmente a gente chega a conclusão de que ele era assim mesmo, uma pessoa extremamente especial e não teve uma única pessoa – todos eles são testemunhas – que alguém, um dia, pronunciou o nome do Luis Roberto e não houve nenhuma manifestação diferente do que sempre acontece. Então, Altamiro, Jorge Simas, agora o Gilson, e todos os que conviveram com ele, na época...
ADEMIR
Sérgio Cabral!
Marcello
Sérgio Cabral, Egeu Laus, todo mundo falou. Não teve uma pessoa que dissesse, “olha, tem um senão aqui”. Nada. Absolutamente nada. Então você chega à conclusão de que, realmente, era uma criatura especial, e temos o privilégio de conviver com ela (Herlinha), com Luciana, com Beto (os filhos) e ela faz parte, é um elo tremendo, porque as pessoas, quando a gente conversa e é muito interessante essa experiência, pra gente acertar a vinda, cachê, essas coisas, então facilita pra caramba, porque tem uma pessoa e outras pessoas...e agora a gente também, obviamente com o contato que estamos tendo, nós vamos ampliando esse leque, nós vamos fazendo amizades com o pessoal...
GILSON
Herlinha é arquivo vivo. E com essa idade maravilhosa que você está...
Marcello
Imagina que ela nasceu no dia 2 de novembro, nasceu no Dia dos Mortos...não tinha que nascer outro dia, tinha que ser no Dia dos Mortos...
HERLINHA
Graças a Deus! Sou filha de Inhansã com Xangô.
Marcello
Isso é problema, viu, isso é problema.
GILSON
O negócio é sério.
Marcello
A linha dela é pesada pra caramba.
GILSON
(terminada a brincadeira, Gilson retoma e entrevista)...Mas é isso. O Luis Roberto...eu fiz um disco com a Gal Costa que chama “Minha Voz”, e nós começamos com a música que dá título ao disco. Então, eu ia colocar as cordas depois e a base também. Nós estávamos todos no estúdio, pelo lado de dentro da técnica e o Luis ia fazer a primeira entrada da música com violão e voz, ele e ela, juntos. Pra ela refazer depois. Aí começaram a tocar e, o João, que era o técnico, começou a gravar, ou o Luigi - acho que era o Luigi – começou a gravar. Quando terminou a primeira parte da música – que aí para pra poder entrar o ritmo e as cordas – ela (Gal) vira pro Luis e diz assim: “Ficou lindo, não é? Está lindo.” E não deu para fazer outra. Ele tinha um som de violão muito especial, ele tocava muito doce...ah! eu queria refazer o violão...Luiz para com isso, vem cá ouvir. Aí eles vieram para a técnica ouvir...É não vou voltar...E ficou. Ela falando no disco, quando termina a parte dela com ele, ela fala: ta lindo, ficou lindo. Aí entram as cordas e ela começa a cantar. Então essas coisas, rapaz...
HERLINHA
No disco não tem...
GILSON
Não tem nosso nome, não tem nome do arranjador...Tem o nome do rapaz que fez o penteado, o que fez a roupa, maquiador (risos) Sim, é verdade. Mas o nosso...o nome dos arranjadores, não têm. Nem dos músicos.
Marcello
Eu acredito, porque o Ari Vasconcellos já disse isso há quarenta anos atrás, quando ele abre o Panorama da Música Brasileira. Se você pegar um disco de jazz, tem até o nome do faxineiro que trabalhou no estúdio. Agora se pegar um disco brasileiro, você vai encontrar – como você disse - o cara que penteou e fez a maquiagem. Agora os músicos, você não acha.
Luiz Pires
Gilson, no seu show você prestigia dois artistas de Santos, conte-nos um pouquinho sobre essa parceria ...
GILSON
Eu recebi um disco do Celso (Lago), há algum tempo atrás - o Ademir foi quem mandou - uma gravação, uma cópia pra ver e tal...e ontem, na casa do Ademir, nós demos uma ensaiada, pra ver tom, pra ver tudo. Eu fiquei impressionado, falei com Eliana, minha mulher. Eliana, olha que coisa impressionante. O Celso parece que...se tirar a letra e ele fizer o “vocalise”, é um instrumento. Ele parece um instrumento, a inflexão, a forma que canta, eu fiquei impressionado. E a Nadja, nós nos encontramos em São Paulo, ela estava muito rouca, apreensiva, porque a melodia não é muito fácil, e ontem ela cantou, nessa passada no ensaio, maravilhosamente bem. Então, eu acho que os dois convidados são maravilhosos e eu fiquei impressionado ontem mesmo com os dois.
Luiz Pires
Muito obrigado. É uma honra mesmo e eu queria convidar a Herlinha e a Nadja pra encaminhar...
Marcello
...uma lembrança pra você levar para o Rio de Janeiro. A gente sempre dá uma lembrança para os nosso amigos que nos visitam.